Na última terça (6), o Teatro da Vertigem, companhia paulistana com mais de 30 anos de existência, gerou comoção ao divulgar uma campanha on-line para a arrecadação de fundos para manter a sede do grupo, no Bixiga. O imóvel está com aluguel e IPTU atrasados, gerando uma dívida de cerca de 90 000 reais. O diretor Antonio Araújo, 57, um dos fundadores do Vertigem, que surgiu na Universidade de São Paulo (USP), em 1992, tenta encarar a situação com esperança. Ele torce para que as quatro indicações ao Prêmio Shell deste ano dadas a Agropeça (2023), último trabalho da trupe, viabilizem uma nova temporada e, assim, as contas diminuam.
O espetáculo, que ficou em cartaz no ano passado no Sesc Pompeia, dá continuidade à abordagem crítica e provocadora do grupo, colocando personagens do Sítio do Picapau Amarelo, de Monteiro Lobato, em uma arena de rodeio, para refletir sobre a influência da cultura do agronegócio no país. Em paralelo, Araújo se prepara para estrear, junto dos diretores Guilherme Marques e Rafael Steinhauser, em 1º de março, a nona edição da Mostra Internacional de Teatro de São Paulo (MITsp), que traz montagens de cinco países e também do Brasil aos palcos paulistanos.
O Teatro da Vertigem corre o risco de perder sua sede no Bixiga devido a dívidas de aluguel e IPTU. Como a situação chegou a esse ponto?
Está muito complicado. Não dá mais para tirar do nosso bolso para manter a sede. Já faz alguns anos que não conseguimos apoio de editais e a situação piorou na pandemia. Paramos de pagar o aluguel dos galpões onde guardávamos nosso acervo e tivemos que colocar tudo na nossa sede, que está abarrotada. Mal sobrou espaço para ensaiar. Ainda assim, fizemos Agropeça, que só foi possível com o apoio do Sesc. Foi superbacana, lotamos a plateia todos os dias e imaginamos que, com o sucesso, daria para fazer uma segunda temporada, mas até agora não deu. Só recebemos recusas, é uma loucura. Vendemos nossos equipamentos, como mesa de luz, computador, mas acabou, não tem mais o que vender. Se perdermos a sede, vamos ter que jogar os cenários e figurinos de mais de trinta anos no lixo. A campanha é um apelo para ver se conseguimos reverter essa situação, pagar a dívida e, se sobrar dinheiro, conseguir um fôlego durante alguns meses. Nunca fizemos isso, chegamos no limite.
Por que acha que essa recusa tem acontecido?
Há um cenário mais amplo, de reconstrução do país, depois de toda a destruição na área cultural que aconteceu nos últimos anos. Destruir é muito fácil, você acaba com as coisas com uma canetada; já reconstruir leva tempo. Outro fator é que existe um mito de que as companhias mais longevas, como o Teatro da Vertigem, não precisam mais de apoio, mas isso é uma mentira.
Em um depoimento no Instagram, você disse que o último trabalho do grupo, Agropeça (2023), foi uma das direções mais plenas que já fez. Por quê?
Por várias razões. No âmbito artístico, desde antes do governo Bolsonaro, eu já queria falar sobre o conservadorismo, o movimento reacionário que despontou no Brasil. Queria olhar para isso a partir da perspectiva do agronegócio, da música sertaneja, do rodeio. Acho que, na Agropeça, consegui, como encenador, materializar esse universo. Também foi o primeiro grande espetáculo que fiz com o Vertigem desde Patronato 999 Metros, no Chile, em 2015. Sonho em circular pelo país com esse trabalho, principalmente para as capitais do Centro-Oeste e as cidades do interior de São Paulo, onde essa realidade é muito presente. Sigo tentando, mas até agora não conseguimos nenhum apoio. No âmbito pessoal, Agropeça marcou minha saída de uma depressão que eu enfrentava havia alguns anos. Sei que é uma doença insidiosa, que vai e volta, mas, hoje, me sinto curado.
Como e por que surgiu a Mostra Internacional de Teatro de São Paulo?
O diretor-geral da mostra, meu colega Guilherme Marques, fazia o Encontro Mundial das Artes Cênicas (Ecum), em Belo Horizonte, e eu era um dos curadores. Decidimos criar a MITsp justamente pela inexistência, na época, de um festival internacional de teatro em São Paulo, que é um dos centros mais importantes da atividade teatral do país.
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Neste ano, a nona edição da MITsp reúne dez espetáculos, nove estrangeiros, vindos de países como Argentina e África do Sul, e uma estreia nacional. Quais foram os critérios utilizados na curadoria?
Tentamos intensificar na curadoria desta edição a perspectiva decolonial. Não haverá nenhum grande artista europeu, por exemplo. Além dos espetáculos, sempre demos uma ênfase igualmente importante na parte reflexiva, que são os debates e as palestras. Outra característica muito importante da MITsp é o eixo MITbr — Plataforma Brasil, que criamos em 2018. A partir dele, convidamos programadores daqui e de outros países para assistir a peças de companhias brasileiras de vários estados. O projeto teve uma resposta muito rápida, para a nossa surpresa. Muitos espetáculos que estrearam na mostra começaram a circular em festivais europeus. O MEXA, que é um grupo paulistano pequeno formado por travestis em situação de rua, se apresentou em uma edição da MITbr e conseguiu financiamento de festivais da Inglaterra e da Bélgica para fazer um novo espetáculo, o Poperópera Transatlântica (2023), que agora veio para o Brasil. A Janaína Leite (diretora e uma das fundadoras do Grupo XIX de Teatro) está circulando pela Europa com História do Olho: um Conto de Fadas Pornô-Noir (2023), que também estreou na MITbr. É incrível.
Você cresceu em Araguari, no interior de Minas Gerais, mas mora na capital paulista há quarenta anos. Qual a sua relação com a cidade?
Do ponto de vista artístico, o Vertigem tem uma relação fundamental com a cidade, pois saímos do teatro e ocupamos as ruas, a igreja, o presídio, o Rio Tietê… Nosso trabalho não existiria em outro contexto. Sempre que eu penso no trabalho que faço com o Vertigem, penso a partir de São Paulo. A cidade é o que me alimenta, o que me inspira, o que me dá vontade de fazer teatro.
Publicado em VEJA São Paulo de 9 de fevereiro de 2024, edição nº 2879