No campo de futebol amador, que carrega o nome de Paixão, no Morro do Piolho, Capão Redondo, em um dos extremos da Zona Sul, a poeira que o vento levanta não atrapalha a criançada que treina boxe em um ringue improvisado, logo atrás das traves do gol do lado direito.
“O mais difícil é lutar com o outro, trocar porrada”, revela Cristyan Davi, de 9 anos, que integra a turma há três meses. “Você tem medo? Vamos lutar comigo?”, provoca a colega, Mariângela Ferreira, 13 anos, com um sorriso tímido, mas desafiador, de quem sabe que esse tipo de proposta somente deve ser feita entre as quatro cordas. “Tenho, mas trouxe meu protetor (bucal), então está tudo bem”, responde o garoto.
O projeto, chamado Boxe Solidário, foi idealizado pelo ex-atleta da modalidade e treinador Guilherme Miranda e pela diretora de fotografia Valentina Denuzzo. “O primeiro núcleo foi o da Vila Anglo, em setembro de 2020, que tem um formato diferente, de paga quem puder. Depois, começamos de forma voluntária na ocupação Alcântara Machado (Mooca, Zona Leste) e no Capão”, descreve Miranda, que ministra as aulas.
Ele apresenta os diferentes objetivos nas duas últimas turmas. “Aqui no Capão temos um treinamento mais focado, queremos prepará-los para competições. Na ocupação, o objetivo é extravasar a energia”, avalia. O Boxe Social é parceiro do Núcleo de Acolhimento e Valorização da Educação (Nave), organização não governamental que atua naquela região desde 2014 e que foi criada pelo produtor cultural Bruno Horácio, 32 anos, e pela educadora Michelini Farias, 45.
“Acompanhei a saída do Capão das páginas policiais do jornal para as de cultura, movimento que se deu a partir dos anos 90. Ressignificamos nossa narrativa por meio do esporte e da cultura hip-hop. É preciso mover a periferia para a frente com essas ferramentas”, contextualiza Horácio.
As aulas de boxe no Capão ocorrem às terças, sextas e aos sábados. Na ocupação Alcântara Machado, às quintas. A duração é de cerca de uma hora. Ao todo são por volta de 35 alunos, que agora, com a volta às aulas, reúnem esforços para dar conta das jornadas de exercícios e estudo.
“Eu me sustento com aulas particulares de boxe. Às vezes, não sobra para o aluguel, porque tenho de comprar materiais”, conta Miranda, que criou um crowdfunding para ajudar a custear a empreitada. São pedidos 7 000 reais mensais para a manutenção da estrutura no Capão e na ocupação. Esse valor inclui os ringues montados com placas de EVA, transporte, aquisição de 25 bandagens, dezoito luvas de boxe, 25 uniformes e quatro sacos de pancada, além da doação de cestas básicas às famílias dos alunos e possível remuneração dos envolvidos, entre eles a artista Amanda Monte, que vai confeccionar um mural no ringue da Alcântara Machado.
“O valor é muito alto para ser bancado por uma, duas pessoas, por isso falei para o Gui: ‘Temos de fazer um financiamento coletivo’”, relembra a jornalista argentina Vivi Torrico, do Solidariedade Vegan, projeto também parceiro do Boxe Social e que distribui marmitas a pessoas em situação de rua.
Enquanto a ajuda não vem, as turminhas de futuros boxeadores e boxeadoras seguem. Mariângela se prepara para um campeonato previsto para o mês de outubro. “Estou animada e ansiosa”, diz ela sobre os sentimentos durante os treinamentos intensos.
Quando questionada sobre como concilia os treinos com os estudos, ela explica: “Parei no 5º ano. Minha mãe está tentando achar vaga aqui perto, mas não consegue”. A declaração seca contrasta com a euforia dos brasileiros com as vitórias de Rayssa Leal no skate e Rebeca Andrade na ginástica artística na Olimpíada de Tóquio. Será que só continuaremos a aplaudir talentos quando eles conseguirem subir ao pódio ou vamos apoiá-los nessa caminhada? É a pergunta que fica.
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Publicado em VEJA São Paulo de 8 de setembro de 2021, edição nº 2754