“Quando me aposentei, não quis ficar parado. Meu filho David, 44, ator e humorista, me indicou para trabalhos como figurante, e meu bigode enrolado me garantiu uma ponta como imigrante italiano em uma série histórica. Por causa dos cabelos brancos, um diretor de uma agência me analisou e disse que eu poderia ser Papai Noel no Natal de 2016 se deixasse a barba crescer. Foi o que eu fiz. Quando me ligaram pedindo que eu fosse buscar a roupa, minha mulher, Maria da Graça, 65, foi comigo. Quando o agente a viu, foi até o carro buscar uma roupa de Mamãe Noel e pediu para que experimentasse e enviasse uma foto a ele.
Contratados, fizemos 38 eventos de novembro até as vésperas de Natal. Entregamos presentes em escolas, fábricas, laboratórios e bancos. Desde então, todos os anos são assim. O Natal com nossa família fica para depois. Primeiro levamos felicidade às casas dos outros, depois fazemos nossas celebrações na primeira semana de janeiro. Sai até mais barato.
Antes da pandemia, fazíamos eventos em shoppings. Uma vez não tive agenda e sugeri que David trabalhasse no meu lugar. Ele é brincalhão e cativante, só não tem barba. Com uma postiça, ele também virou Papai Noel, para levantar um trocado, e minha neta, Fernanda, 12, virou sua ajudante vestida de duende.
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Eu e Graça estamos juntos desde criança. Ela morava no mesmo bairro que eu, no Tatuapé, Zona Leste, e nos tornamos amigos quando ela tinha apenas 11 anos e eu, 16. Na mocidade decidi pedi-la em namoro. Nos anos 70, as moças não diziam “sim” de bate-pronto, era preciso esperar um pouquinho. Marcamos um encontro no parquinho para eu receber a resposta, mas, antes que ela pudesse dizer qualquer coisa, tinha tanta certeza que coloquei minha mão em seu ombro e disse que ela iria ser minha namorada.
Meses depois, vesti um terno e fui até a casa da Graça pedir permissão ao pai dela. Começamos a namorar em casa, o que significava assistir à TV no sofá da sala ao lado dos pais. A única folga era a despedida no portão, quando eu ganhava um beijinho escondido.
Três anos depois nos casamos e, após David, tivemos nossa filha Denise, hoje com 40 anos. Graça chegou a engravidar pela terceira vez, mas perdeu o bebê. Levei-a para uma casa de saúde, onde uma freira disse que ela tinha perdido muito sangue e teria poucas horas de vida. Comecei a chorar, fui à capela do hospital e pedi a Deus misericórdia. Mais tarde, a mesma freira disse que um milagre havia acontecido e ela sobreviveria.
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Graça é minha parceira de vida, estamos casados há 46 anos, e eterna namorada. Adivinho o que ela está pensando e vice-versa. Acho que hoje os relacionamentos terminam muito rápido. Tivemos nossas desavenças, claro, mas nunca pensamos em nos separar. Para um casamento duradouro o segredo é ter respeito, amizade, cumplicidade e, principalmente, amor.
Também sempre administramos nossos bens juntos. Minha mulher embarca comigo nas minhas loucuras. Antes de nos aposentar, abrimos uma pequena fábrica de brinquedos. Por mais de trinta anos, inventei mais de cem tipos de jogo educativo de tabuleiro. David também era criador. Vivíamos em contato direto com as crianças para testar os joguinhos. Brinco que sempre fomos uma família de “Noéis”, mas não sabíamos. Em lugares públicos, as crianças nos reconhecem e apontam, mesmo sem as fantasias. No começo da aposentadoria eu estava ranzinza, mas hoje eu sou um bom velhinho.”
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Publicado em VEJA São Paulo de 30 de dezembro de 2020, edição nº 2719