Maria Gadú, 36, atendeu a ligação da estrada, presa no trânsito entre o Rio de Janeiro e Paraty.
A paisagem era especial, pois dali era possível avistar a Ilha Grande, refúgio fluminense da sua família, e um dos berços da sua relação com a natureza.
A estrada, por si só, tem tudo a ver com a sua trajetória: quase nômade, a paulistana teve uma infância dividida entre São Paulo, Santos e São José do Rio Preto.
Recentemente, viveu anos pandêmicos em Manaus, antes de retornar ao Rio de Janeiro, cidade que a artista abraçou aos 19 anos e, felizmente, a abraçou de volta — foi o cenário do seu sucesso nacional, com seu disco de estreia, lá em 2009.
Nos últimos tempos, colocou o pé no freio da carreira, se dedicou mais à causa ambiental e indígena e tornou-se mãe. De volta à rotina dos palcos, se apresenta nesta sexta-feira (20) no Tokio Marine Hall, em São Paulo. “Eu nem tinha a pretensão de voltar a cantar. Agora, só quero me divertir”, conta.
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Você nasceu em São Paulo e começou a sua carreira aqui. Onde você se apresentava na cidade?
Tive uma adolescência bem paulistana. Comecei a tocar na noite com 12 para 13 anos e trabalhava quase todos os dias. Me apresentava em uma rede de choperia que tinha dentro dos shoppings, chamada Braumeister. Era uma rede grande, então passei a tocar na cidade inteira, porque tinha em quase todos os shoppings. Além de tocar em todas as pizzarias e bares do Jabaquara, Vila Santa Catarina, Diadema, Santo Amaro, porque eu sou da Zona Sul.
A partir do disco Guelã — Ao Vivo (2016), você começou um processo de hiato das suas turnês e discos. Por quê?
Nunca tive o plano de fazer um disco e ele ser muito escutado. O meu sucesso, para mim, foi uma grande surpresa — um grande susto, digo até, porque não estava no meu cronograma. A minha cabeça não foi programada para viver esse sonho, porque eu não tinha sonhado nele. Tudo que aconteceu comigo, até certo ponto, foi demais. O volume de trabalho era muito alto e não tinha tempo para dar continuidade às outras coisas que eu fazia, como estudar história, estar em contato com a natureza, me formar, ser uma ativista ambiental. Eram dezesseis, dezessete shows por mês. Fiz o Guelã – Ao Vivo (2016) pensando o seguinte: vou fazer um disco tão diferente que vai dar uma baixada de bola. Funcionou. Foi um passo artístico para me organizar e fazer essa pausa. Só assim consegui viajar o Brasil com a Sonia Guajajara, ir até as aldeias, me aprofundar nisso. Agora resolvi voltar, porque tem que ter um pouco de droga, um pouco de salada. No caso, a música é a minha droga.
Os últimos anos dessa pausa coincidem com o período do governo Bolsonaro (2019-2022). Como os momentos políticos do país atravessam você como artista?
Sempre estive ativa politicamente, defendendo e me instrumentalizando para estar junto na luta dessas causas que são tão caras para a gente. Para mim, o grande marco não é nem Bolsonaro, e sim o golpe de 2016. Quando ele foi eleito, já estava todo mundo exausto. Foi cansativo rodar o Brasil, principalmente com uma representante das causas indígenas. Em todo lugar que passamos, ouvimos relatos e vimos marcas muito severas do que a extrema direita deixou. Mesmo agora, nesse exercício de comemorar algumas coisas, como o Ministério dos Povos Indígenas e a Sonia como ministra, o Senado voltou com o marco temporal, três semanas atrás. É superexaustivo. O caminho do mundo está muito bélico, esquisito.
“Acho que voltei a me divertir com a música. Em dado momento, tive depressão, que dá uma exaustão da vida. Agora está sendo uma fase brilhante”
Durante os momentos mais graves da pandemia, você viveu em Manaus. Como aconteceu isso?
Odeio aquelas pessoas que falam que a pandemia foi boa para elas — para mim, não foi boa em nada. Em Manaus, a gente quase não dormia, foi um período muito cansativo, uma loucura. Eu ainda estava em São Paulo quando estourou a pandemia, tinha acabado de chegar do Rio Negro. Fiquei um tempão no lockdown, como todo mundo, mas Manaus precisava de atividade na arrecadação e distribuição de insumos. Então eu me dispus, e fiquei nessa ponte. Depois, ainda estourou a crise do oxigênio. Foi complicado, voltei em 2022. Até pensei em me mudar para lá de vez, mas as coisas começaram a amansar, me deu uma calmaria no coração e muita vontade de fazer música.
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Como está sendo esse seu retorno aos palcos? Essa volta está reconectando você ao seu início de carreira?
Está sendo uma delícia, acho que voltei a me divertir com a música. Em dado momento, tive depressão, que dá uma exaustão da vida. Agora está sendo uma fase brilhante, porque estou me divertindo muito. Os shows vêm sendo uma reverência a tudo que fiz até aqui, desde o meu primeiro disco. Está sendo bem celebrativo e nostálgico. Cada show é um show, cada bis é um bis, às vezes rola até Evidências (risos). Mas isso tudo não me lembra o meu começo, não. Me sinto muito distanciada da pessoa que eu era. Por estar mais velha, ter algumas seguranças, estar fazendo o que eu quero, porque eu quero… Isso me conecta mais a um futuro do que a um passado.
No último ano, você também se tornou, ao lado de sua namorada, Popi, uma das três mães de Alice, filha da sua irmã, Vanessa. Como isso atravessou você como artista?
A chegada de uma criança é uma coisa muito espetacular, porque ela é uma força motriz que tira as coisas do lugar. Você acaba requalificando tudo, o tipo de amor que você recebe, o tipo de amor que você dá. E a chegada de um bebê te dá um senso maior de chão. Estou escrevendo de uma forma que eu não escrevia. Os últimos dez anos foram muito importantes para eu testar coisas novas e entender que sou uma pessoa que gosta de mudar. Então mudei a minha forma de escrever, a minha forma de reagir, de pensar, de amar… Estou achando muito legal essa fase. Estou fazendo o show que eu gosto, com uma equipe que eu amo e com um bebê maravilhoso em casa, que sorri a torto e a direito. Estou administrando melhor as coisas, e ficando mais tranquila.
Quais os próximos passos na carreira?
Tenho um álbum de forno a lenha, que estou fazendo desde 2018. Não é um disco de pressa, por isso mesmo que não sei responder quando vai sair. Estou muito feliz, fiquei muito tempo sem subir nos palcos e estou me divertindo tanto, tocando até Shimbalaiê de novo (risos), que não estou dando prazo. Vamos nessa toada e, na hora que ficar pronto, eu me reprogramo de novo.
Publicado em VEJA São Paulo de 20 de outubro de 2023, edição nº 2864