Nas últimas décadas, Frida Kahlo (1907-1954) entrou para o panteão de personalidades da história que viraram ícones pop, ao lado de Charles Chaplin e Che Guevara, entre outros. A figura e a obra singular da pintora mexicana passaram a estampar vários produtos, de camisetas a capinhas de celular, inspiraram desfiles de grandes estilistas, serviram para batizar um disco da banda de rock Coldplay e ganharam até uma versão em Hollywood, com Salma Hayek no papel da protagonista. O fato de estar a léguas do padrão convencional de beleza feminina, com o rosto moreno emoldurado por uma monocelha e o corpo frágil (teve poliomielite na infância, que deixou sequelas em uma das pernas, além de ter sofrido um terrível acidente na juventude), o comportamento transgressor e a capacidade de transformar as cicatrizes de amores mal resolvidos e tragédias pessoais em matéria-prima de seu trabalho ajudaram na idolatria.
Magdalena Carmen Frieda Kahlo é responsável por um conjunto relativamente pequeno de criações (não mais que 150 telas). Algumas de suas obras foram parar nas paredes de instituições importantes, como o Museu de Arte Moderna (MoMA), de Nova York, ou em casas internacionais de leilões, atingindo cotações perto de 6 milhões de dólares, recorde para o universo de nomes latino-americanos. Parte considerável da produção dela ainda se encontra em seu país natal, na Casa Azul, na Cidade do México, no endereço onde viveu por 25 anos com seu marido, o também pintor Diego Rivera. O lugar acabou sendo transformado depois no Museu Frida Kahlo. As peças nunca saem de lá, o que dificulta a realização de grandes exposições sobre a artista.
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A partir deste domingo (27), o público da cidade terá a chance de conferir de perto uma parte significativa do universo da pintora na mostra inédita Frida Kahlo — Conexões entre Mulheres Surrealistas no México. O endereço que abrigará a empreitada, o Instituto Tomie Ohtake, em Pinheiros, notabilizou-se nos últimos anos como responsável por atrações recordistas de público na capital no mundo das artes. Entre os blockbusters recentes do local, encontram-se eventos dedicados a nomes como Salvador Dalí e Yayoi Kusama. Frida, que fica em cartaz até 10 de janeiro, tem potencial para igualar ou até superar seus antecessores. Os ingressos custam 10 reais.Desde a abertura das bilheterias, no início de setembro, já foram comercializados pela internet quase 12 000 tíquetes. “O que Frida representa diz respeito a toda a humanidade: dor, tristeza, amor”, teoriza a curadora Teresa Arcq, que também é mexicana. “Sua produção está diretamente ligada a sentimentos universais. Por isso, será sempre contemporânea.”
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O material foi obtido por Teresa junto a coleções particulares e instituições dos Estados Unidos e do México. Para se ter uma ideia da dificuldade de reunir essas preciosidades, algumas obras podem demandar cinco anos de espera até sua disponibilização para empréstimos a eventos do tipo. A curadora obteve sucesso na empreitada graças à sua relação íntima com o mundo de Frida, que lhe proporciona, por exemplo, contatos quentes na Casa Azul. O material da pintora permaneceu intocado no local durante cinquenta anos depois da morte dela. Teresa foi uma das primeiras profissionais a ter acesso ao tesouro. No Tomie Ohtake, as produções amealhadas pela curadora são exibidas em diálogo com trabalhos deoutras dezesseis artistas conterrâneas influenciadas por ela, em um total de 100 obras.
Uma seção especial do instituto em Pinheiros é reservada à relação especial de Frida com a moda. O estilo dela de vestir, quase tão famoso e comentado hoje quanto suas telas, é explorado em um ambiente criado pelo restaurador Renato Camarillo, responsável pela conservação na Casa Azul das roupas que pertenceram à mexicana. Como as originais não podem deixar o museu, o profissional vestiu seis manequins com peças semelhantes, das décadas de 20 e 30. “Ela adorava trajes e joias inspirados em povos pré-hispânicos e tecidos estampados com características regionais”, conta Camarillo.
O coração da mostra é o acervo de vinte criações de Frida, entre telas, gravuras e desenhos, formando um conjunto denso, surpreendente e de forte carga afetiva. Até os 18 anos, ela nunca havia pensado em pintar. Com uma perna atrofiada devido à poliomielite, vivia vestida como um menino e impunha sua personalidade forte para sobressair ao corpo frágil. Aos 18, um acidente quase fatal mudaria sua trajetória: o ônibus em que se encontrava foi atingido por um bonde. Além de sofrer fraturas em vários lugares na espinha dorsal, clavícula e pé, Frida teve a pélvis atravessada por um pedaço de metal. No longo período de convalescença, começou a mexer com tintas e pincéis. Ela seria forçada depois a fazer mais de trinta operações e três abortos (não podia ter filhos devido às sequelas do desastre). Uma das gravidezes interrompidas virou tema de sua litografia Frida y el Aborto, uma das peças em exibição no Tomie Ohtake.
Outro destaque da mostra é a tela Diego en Mi Pensamiento, na qual a artista retratou a si mesma, vestida de branco, com o marido desenhado na testa, como uma declaração de que nunca o esqueceria. Quando se conheceram, em 1922, ela era uma adolescente. Vinte e um anos mais velho, Diego já figurava entre os pintores mais renomados do México. O casamento dos dois ficou famoso pelas infidelidades de ambos os lados — no caso de Frida, a lista incluía homens como o revolucionário russo Leon Trotsky e inúmeras mulheres, algumas delas representadas na exposição brasileira. Também está presente no evento a natureza-morta Frutas de la Tierra, que integrou a seleção de obras da primeira mos trasoloda pintora, em 1938. Apesar de a exibição ter sido sediada na Julien Levy Gallery, espaço nova-iorquino ligado a artistas surrealistas, Frida dizia que seu objetivo não era pintarsonhos, e sim retratar a realidade. “Não sei se minhas pinturas são ou não surrealistas, mas estou segura de que são a expressão mais franca do meu ser”, costumava declarar.
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Com essa iniciativa, o Tomie Ohtake firma-se como um dos mais efervescentes redutos culturais da capital. Com 7 500 metros quadrados, ele foi inaugurado, em 2001, em homenagem a Tomie Ohtake (1913-2015), com a participação direta de Ruy e Ricardo, filhos da pintora. O lugar organizou várias exposições bem-sucedidas, como a dedicada ao arquiteto catalão Antoni Gaudí, em 2004, que atraiu cerca de 80 000 visitantes. Nada disso, porém, se compara ao que aconteceu depois, quando o local emplacou alguns dos maiores blockbusters da cena artística da cidade. Essa virada começou no ano passado com a mostra da japonesa Yayoi Kusama, responsável por gerar filas quilométricas à porta do prédio. Ao término da temporada, 522 000 pessoas haviam comparecido à exposição. O recorde seria batido com Salvador Dalí, em cartaz entre o fim de 2014 e o início de 2015: 538 000 visitantes. O desempenho desses eventos superou as expectativas mais otimistas e obrigou o espaço a repensar sua política. “Quando fizemos a mostra da Kusama, não estávamos preparados para abrigar um evento tão grande, nem o público estava acostumado a isso”, diz o arquieto Ricardo Ohtake, administrador do Instituto. “Tivemos de aprender juntos.”
A implantação do sistema de vendas de bilhetes pela internet, realizada na abertura da exposição de Miró, em maio, representou uma das medidas mais importantes no processo de melhorias. O esquema ajudou a amenizar o sufoco das filas, pois os ingressos já saem com o horário de entrada marcado. Cerca de 30% das vendas de tíquetes para essa mostra foram feitas on-line. O museu também reforçou a infraestrutura de modo a tornar mais confortável a experiência dos frequentadores. Exemplo disso foi o audioguia, que funciona com a leitura de QR codes espalhados pelas paredes da mostra. Quando ativadas por smartphones, as gravações trazem explicações que mais parecem bate-papos, e não textos formais, como é costume em outras instituições. O local sedia hoje quase vinte exposições por ano, o dobro do que ocorria nos primeiros tempos do museu. “A diferença com relação ao início tem sido nossa maturidade ao tratar com as entidades estrangeiras, negociando itinerâncias para baratear o custo dos projetos”, afirma Paula Signorelli, responsável pelos assuntos institucionais do centro cultural. Depois de São Paulo, a mostra de Frida Kahlo segue para espaços mantidos pela Caixa Cultural no Rio de Janeiro e em Brasília.
O instituto fica no térreo de um prédio de 22 andares em Pinheiros que chama atenção pela fachada cor-de-rosa e pelas carambolas de cor lilás. Esse edifício pertence ao laboratório Aché, e o espaço do museu foi cedido pela empresa em comodato. Em um exercício matemático livre, considerando o valor médio de 115 reais o metro quadrado para locação na região, o Tomie Ohtake ficaria livre de um aluguel mensal de cerca de 800 000 reais. O arranha-céu e o centro cultural nasceram da prancheta de Ruy Ohtake. É seu irmão, porém,quem cuida do dia a dia e costuma dar a palavra final sobre as atrações da agenda. O trabalho realizado ali dentro, acreditam eles, ultrapassou os limites do museu. “Nosso sucesso ajudou a revitalizar o entorno”, afirma Ricardo Ohtake.
Está longe de ser um exagero. Os sócios da cervejaria BrewDog e da Lanchonete da Cidade, casas vizinhas do lugar, ambas inauguradas em 2014, assumem que escolheram o ponto para aproveitar o bochicho gerado pelas exposições. “Pesquisamos oitenta opções de ponto na cidade antes de optar por esse pedaço de Pinheiros”, conta Gilberto Tarantino, um dos donos da BrewDog. “Nos fins de semana em que as grandes mostras estão em cartaz, o número de clientes aumenta em até 40%”, completa. O fenômeno se repete na Lanchonete da Cidade, onde as vendas chegam a dobrar nos períodos de grandes eventos do Tomie Ohtake. Os estabelecimentos já reforçaram seus estoques na expectativa da chegadado furacão Frida ao endereço.