“Casa é o templo onde você se reconhece”, diz Lufe Gomes
No Diário da Quarentena, o fotógrafo conta como são as visitas virtuais que tem feito ao local onde as pessoas moram
“Sou fotógrafo de casas, mas eu falo de gente. Antes, fazia isso presencialmente. Agora, com um clique, entro na vida das pessoas e vejo onde elas moram. Faço companhia para quem me segue, todo dia visito virtualmente alguém. Com a facilidade das chamadas de vídeo, vou conduzindo tudo como se estivesse lá, desde o momento em que a moradora abre a porta até pedir a ela que me conte a história de cada objeto. Já fui assim para Cabo Verde, Portugal, Angola… Mostrei tudo no canal Life by Lufe do YouTube, o que não seria possível antes. Acontece de as pessoas falarem “Arrumei a casa te esperando outro dia, mas hoje que está bagunçado você me chamou para a live”. Mas eu quero isso, a casa sem enfeites. Fujo do padrão estético, aceito um padrão humano. Cada pessoa é única, por isso cada casa é única. Da casa com mais luxo à mais simples, eu gosto de todas. Vejo o que cada item representa naquela decoração e só admiro.
No apartamento onde moro sozinho, acordo todo dia entre 5 e 6 horas, junto com o amanhecer. Ainda na cama, faço uma meditação para começar o dia. Não é uma posição sentada específica repetindo o mantra “Om”, mas sim uma intenção de me colocar no momento presente e agradecer por estar aqui, agora. Desço a escada do mezanino prestando atenção em cada passo. Tomo banho e me arrumo como se tivesse de sair para uma reunião dali a cinco minutos, mesmo na quarentena, em que eu não piso nem no elevador por nada. Coloco a roupa, passo até perfume. É um respeito comigo. O cuidado em me arrumar nunca foi para os outros, foi sempre para mim. Não ligo a TV nesse período. Coloco uma playlist com sons de passarinho ou jazz, vou checar todas as minhas plantas, ver se está todo mundo bem, e depois tomar meu café. Quando estou na última xícara, abro a câmera e começo a gravar o Café com Lufe, um programa de dez minutos, sem edição, sem corte, só com pensamentos sobre a vida, como se abrir para o diferente, se aceitar e entender o poder do “muito obrigado”.
Percebi que a sensação de orgulho que as pessoas têm da própria casa aumentou neste período difícil da pandemia. Quando eu paro para ver algum ângulo ou conversar sobre algum cômodo, percebo que logo já cresce a vontade da pessoa de cuidar daquele espaço. Ao olhar para sua casa de um jeito diferente, ela começa a reparar no que é incrível. Já quis fotografar um objeto que estava escondido e a moradora falou: “Mas isso? Achava que era brega, minha avó que fez”. É só na medida da importância dessas histórias que as coisas importam. Sem poder sair, todos começaram a entender que a casa não é lugar de passagem, é o templo onde você se reconhece. Antes, era de onde a gente saía correndo de manhã e para onde voltava de noite já tão cansado que ligava a TV para acompanhar a vida de personagens. Só. Mas onde nós nos reconhecemos? No momento em que nos reconhecemos é que começamos, de verdade, a habitar ali. Isso inclui todos os moradores da casa. Quantas vezes não dizemos às crianças, por exemplo, para elas guardarem logo a “bagunça”, referindo-nos aos brinquedos? Quando somos crianças, os nossos queridos brinquedos são o que nos representam. Por que, no lugar de uma peça impessoal, não colocar um brinquedo como enfeite da sala, para mostrar o pertencimento da criança ao ambiente? Isso vale para os adultos. Há quanto tempo você não olha para a sua casa e se sente representado?
A gente nunca viveu tanto a nossa casa. Ela é um espelho muito claro da nossa vida, e também nossa melhor terapeuta. Falo isso não no sentido da organização material das coisas, mas na percepção de quem você é. Em algumas casas que eu visito o lavabo é maravilhoso, com papel de parede e até lustre de cristal. Mas não há esse mesmo cuidado com o banheiro que é usado todo dia por quem mora ali. É como ter uma roupa de cama incrível e deixar guardada para um momento especial. O momento especial é hoje.
Tenho sentido falta da energia de um abraço. Pessoalmente, quando sentimos o calor de outra pessoa, é um furacão. Neste momento, a “casaterapia” ajuda muito. Eu me pego chorando, do nada, tomando uma xícara de chá e lembrando da carinha de todas as pessoas que estão por trás dos objetos. Sei de onde cada coisa veio, sei a conversa que tive em cada momento. Eu olho e vejo quanto já vivi. Ao mesmo tempo, não tem nada aqui dentro de que eu não me desapegue de jeito nenhum. Se um dia eu não tiver mais nada disso, é só viver que tudo volta.
Tenho aproveitado para tomar lanche da tarde com meus pais, como quando eu era pequeno. Ligo a câmera, esquento um pãozinho, e ficamos conversando uma hora. É importante nos preservarmos, cuidar de quem a gente ama. Está tudo tão complicado lá fora para tantas pessoas. Neste momento de recolhimento, eu faço uma associação com chegar a um lugar sem saber falar a língua, sem ter muito dinheiro, sem entender como as coisas funcionam. Penso que vamos entrar num mundo novo que a gente desconhece. Está todo mundo perdido. Em um exercício mental, imagino como será a vida após a pandemia. O que eu acho que tenho de fazer agora é treinar meu ponto de vista para entender o que já está diferente. A realidade agora é videoconferência? Então está bom. Gravei um episódio do meu programa numa única casa azul no alto de uma montanha de onde as pessoas pulam de parapente no Rio Grande do Norte. Eu nunca iria para lá antes. Estou treinando para entender este mundo novo e me adaptar. É uma meditação constante e ativa.”
Publicado em VEJA SÃO PAULO de 20 de maio de 2020, edição nº 2687.