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Clientes da Bentley deslizam em aulas de direção no gelo

Sobre um lago na Finlândia, a 60 quilômetros do Círculo Polar Ártico, os carrões fazem curvas, derrapagens e ousados cavalos de pau na neve

Por Adriana Marmo, de Kuusamo
Atualizado em 1 jun 2017, 17h10 - Publicado em 27 nov 2014, 16h59
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  • O Bentley Flying Spur, disponível no Brasil desde julho deste ano, move-se a 50 quilômetros por hora. É uma eternidade para um carro que sai da completa estagnação e voa, como diz o nome, confortavelmente a 100 quilômetros por hora em menos tempo — devidamente cronometrado — do que você levou para ler o texto até este ponto final. É preciso desacelerar poucos metros antes de entrar na curva que vem logo a seguir e girar de leve o volante. A frente do veículo entra fechada no ângulo de 60 graus. A traseira desliza para o lado oposto, levantando, como se fosse poeira, a neve que está acumulada na lateral da pista. Não há tempo para pensar: a hora é de pisar fundo e ouvir aquele adorável ronco do motor, segurar o volante apontado para o norte, desacelerar e fazer a curva seguinte. Por uma fração de segundos, a concentração dá lugar à satisfação de sentir-se o piloto mais hábil do mundo. Ela dura pouco.

     

    A traseira patina mais do que devia, as mãos se comportam feito pás de moinho na tentativa de estabilizar o sedã e a foresta congelada começa a rodar, rodar, rodar até que a máquina de 1,5 milhão de reais atola num mar branco e fofo. Nessa hora não há outra saída a não ser chamar o trator para rebocar.

    A brincadeira de dirigir — e, principalmente, jogar no atoleiro — Bentleys de vários modelos acontece sobre o Lago Kuusamojärvi, em Kuusamo, na Finlândia, precisamente a 60 quilômetros do Círculo Polar. Não é de surpreender que permaneça congelado durante todo o inverno. O lago ocupa uma área de 51 quilômetros quadrados e tem superfície de 25 quilômetros. Mesmo sabendo que existe uma camada de 1 metro de gelo entre os pés e a água, e que isso forma uma superfície sólida a ponto de suportar tratores, a ideia de que aquilo pode ruir vez por outra povoa os pensamentos. Ainda mais quando se ouvem os estalos sempre que o rebocador pesado passa, deixando um rastro de pequenas fissuras pelo caminho.

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    As aulas fazem parte do programa Power on Ice, que a montadora inglesa, com sede em Crewe, na Inglaterra, oferece todos os anos, entre fevereiro e março, para refinar as habilidades de condução dos seus clientes. É uma experiência de quatro dias dirigindo modelos como o Continental GT, o Flying Spur e o GT V8, sempre ao lado de um Bentley-boy, ou seja, um piloto experiente e muitas vezes campeão de circuitos europeus de corrida, como as 24 horas de Le Mans. A brincadeira custa a partir de 13 800 euros por pessoa e, além das aulas de direção, inclui um voo em um avião particular de Helsinque a Kuusamo, alimentação, atividades na neve e hospedagem no cinco-estrelas Chalet Ruka Peak. A vista do pôr do sol já dos chalés é um dos momentos marcantes da experiência.

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    Boa parte das montadoras oferece esse tipo de programa não só aos seus clientes, mas também a quem tem o desejo de viver a experiência e a quantia a ser desembolsada por ela. A Ferrari, por exemplo, costuma organizar aulas de velocidade em sua pista de testes em Mugello, no coração da Toscana, na Itália, durante o verão europeu. Já a Maserati proporciona aulas com pilotos de rali para aprimorar as técnicas ao volante dos carros que deixam a fábrica de Modena, na Itália. A Bugatti convida para passar o dia no castelo de Saint-Jean, em Molsheim. É ali que fica a fábrica da marca, localizada na Alsácia, onde a França faz fronteira com a Alemanha. Com um piloto é possível aprender todos os macetes para conduzir com segurança o automóvel mais rápido e mais caro do planeta. E, de quebra, ver de perto como nasce uma máquina como aquela.

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    Sobre o lago, existem oito tipos de circuito, todos desenhados pelo finlandês Juha Kankkunen, quatro vezes campeão mundial de rali e dono do recorde global de velocidade sobre o gelo. Em 2011, a bordo de um Bentley, ele cravou o ponteiro do velocímetro sobre os 330,695 quilômetros por hora. “Cada pista exercita um tipo de habilidade, das curvas fechadas à velocidade”, explica ele. Ao longo dos dois dias de aula, todos os participantes dirigem pelos trajetos. E ganham habilidades como conduzir um carro na chuva e segurar uma máquina em derrapagens. “É divertido, sim, mas útil também.”

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    O chão é de gelo polido — ou seja, tem aderência zero. Em bom português, um sabão. Difícil manter-se em pé e caminhar, mesmo com calçados de solado especial. O que dirá conduzir uma máquina que pesa em torno de 2,5 toneladas. É preciso tranquilidade de esquimó, pulso firme e técnica para domar as vontades próprias que um carro adquire em um terreno como esse.

    Os veículos necessitam de pouca adaptação técnica: apenas pregos no pneu, para aumentar a aderência ao solo. “O segredo está mesmo na técnica”, explica o piloto português Gonçalo Gomes, um dos dez bentley-boys responsáveis por ensinar os clientes. Ela se resume a pisar e tirar o pé do acelerador na hora certa e não fazer movimentos bruscos ao volante, entendendo o deslocamento do peso. Em algumas horas, o motorista consegue controlar o próprio corpo, e então é começar a acelerar. “A experiência de condução em condições extremas torna os motoristas mais habilidosos para dirigir no cotidiano, em meio ao tráfego da cidade.”

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    Cada automóvel é dividido por dois hóspedes, que se revezam ao volante. No fim do programa, terão girado pouco mais de 200 quilômetros, sempre ao lado do piloto, nos oito circuitos. O conforto é outro ponto forte. Enquanto do lado de fora a temperatura varia entre 5 e 10 graus negativos — e sobre o lago a sensação térmica pode chegar ao dobro disso — , dentro do carro o clima é outro. Os bancos de couro se mantêm aquecidos e o ar-condicionado, na temperatura tropical.

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    Quem não dirige se diverte de outras maneiras. Como a juíza portuguesa que foi apenas acompanhar o marido, um advogado de Lisboa. Ela pode desfrutar a sauna finlandesa — uma obsessão que está para os finlandeses assim como a caipirinha está para os brasileiros —, passear pelas paisagens congeladas a bordo de umas snowmobile, ou pela cidade, onde as peles de rena são vendidas em forma de luva, gorro e capa para bancos e sofás. No último dia, a juíza não resistiu à vontade de dar ao menos uma volta na pista pilotando um Continental.

    Um marceneiro inglês, que vive de criar guarda-roupas e cozinhas planejadas para casas abastadas, principalmente no Oriente Médio, aproveitou o programa para comemorar os 18 anos do filho, que no fim da temporada ganhou o “concurso” de melhor piloto do grupo, formado por dezoito pessoas vindas da Inglaterra, da Alemanha, da Austrália e de Portugal. Em fevereiro, um casal octogenário participou pela segunda vez. Ela explica que o marido já não dirige mais pelas ruas de Londres, após ter sofrido um AVC, mas sente-se seguro em pilotar na Finlândia, onde consegue até arriscar um pouco de velocidade. O grupo também toma parte de um passeio noturno pela floresta congelada a bordo de trenós puxados por huskies, cujo latido, em alguns momentos, é ensurdecedor. A grande excitação é mesmo desacelerar e observar a aurora boreal, um fenômeno raro e colorido que funciona como um caleidoscópio para os olhos cansados de tanto branco a perder de vista.

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