Apesar dos trejeitos tímidos e gestos contidos, a estudante Victória Gimenez, de 20 anos, mal disfarça a empolgação ao segurar um robô feito de pecinhas de Lego utilizado em aulas de computação. Ela é um dos destaques do programa de treinamento da Specialisterne, companhia dinamarquesa focada em tecnologia da informação recém-estabelecida em São Paulo. A cidade é a primeira da América Latina a ganhar uma filial da instituição, que conquistou território em quinze países desde 2010. Apesar de ainda discreta, a chegada em novembro da multinacional sem fins lucrativos (atual mente em busca de patrocinadores) representa a realização de um sonho para a garota.
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Mesmo com conhecimento brilhante em ciências, Victória não consegue encontrar emprego. O motivo: assim como os oito colegas selecionados para participar do programa, ela foi diagnosticada com autismo. O grupo escandinavo vem ao Brasil com a promessa de inserir profissionais com essa condição no mercado de trabalho. Em março, deve abrir inscrições para uma nova turma. “Pessoas como eles perdem as vagas porque não possuem boa comunicação e têm dificuldade de interagir socialmente”, afirma Pablo Mas, diretor de operações da Specialisterne.
Para inverter esse quadro, é oferecido um treinamento de cinco meses para capacitar os autistas a trabalhar como técnicos de software. Ao final, buscam-se parcerias com firmas interessadas em incluí-los no banco de funcionários. Entretanto, ainda é preciso preencher alguns requisitos para participar do projeto. O grau da síndrome deve se enquadrar ao que antes era chamado de síndrome de Asperger, um quadro mais leve de autismo.
Hoje, essa condição é classificada como autismo de alto funcionamento. “Entre suas principais características, o portador dessa síndrome apresenta habilidades muito desenvolvidas em assuntos específicos e tem o foco além do comum nessas áreas”, explica o neurologista José Salomão Schwartzman, da Universidade Presbiteriana Mackenzie.
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Por isso, muitas vezes são tidos como gênios ou superdotados. No caso de Victória, a aptidão excepcional apareceu logo cedo. “Comecei a aprender código Morse e a lidar com eletrônica básica com 3 anos de idade”, conta. Seu passatempo preferido era montar e desmontar objetos eletrônicos, como televisão, videogame e secador de cabelo. Aos 17 anos, foi aprovada no curso de física na Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj).
Entre a turma da Specialisterne, ela desenvolve as tarefas mais rapidamente. Leva vinte minutos, cerca de um terço do tempo dos demais, para montar o robô de Lego. Apesar de não haver uma pesquisa brasileira que mapeie o número de autistas no país, especialistas no assunto estimam a existência de aproximadamente 244 000 pessoas diagnosticadas com a síndrome na capital. “Desse total, cerca de 10% exibem habilidades fora do comum”, calcula Joana Portolese, neuropsicóloga do Hospital das Clínicas.
É o caso de Nicolas Brito, 16, que possui ouvido absoluto, o nome que se dá à capacidade de percepção musical acima do normal. Ele sempre teve aptidão para instrumentos. Quando criança, não conseguia falar, mas aprendeu sozinho todas as notas musicais. Começou a fazer aulas de piano aos 9 anos. Pouco tempo depois, tocava inteira a música One, do Metallica, com duração de mais de sete minutos. “Consigo distinguir os tons de um alarme de carro ou de uma batida na parede”, afirma. Só aos 12 anos passou a conversar normalmente. Hoje, viaja ministrando palestras sobre o assunto com a mãe, Anita. O dom de Fernanda Nascimento também veio cedo. Aos 3 anos já demonstrava destreza em desenhos. “Ela só foi se comunicar propriamente com 11 anos; por isso interagíamos com a ajuda de imagens”, lembra a mãe, Regiane.
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A menina, que tem hoje 22 anos, conseguiu recentemente trabalhar como freelancer de ilustração em pequenas publicações. Entretanto, ainda enfrenta preconceito na hora de arranjar um emprego fixo. “Adoraria trabalhar com desenho animado”, sonha. Além disso, exibe outra capacidade peculiar. Apaixonada por aviões, é capaz de reconhecer o modelo da aeronave apenas pela luz emitida no céu ou pelo barulho da turbina. Sabe de cor todas as rotas internacionais de voos que passam pelo Brasil. “Costumo ir até Guarulhos nos fins de semana para fotografar os jatos”, diz.
Outro que demonstra ter memória acima do normal é o estudante Thiago Kauan, de 18 anos. O jovem domina o “calendário permanente”. Basta fornecer uma data completa para ele ditar, confiante, qual foi o dia da semana correspondente. “Meu filho sabe exatamente o que fez em 12 de abril do ano passado, por exemplo”, admira-se Bia França. Segundo Pablo Mas, da Specialisterne, essas competências são ainda subutilizadas no mercado. “Em geral, indivíduos assim trabalham com muita constância, contam com excelente memória e uma capacidade visual extraordinária. Além disso, são honestos, gostam de fazer tarefas repetitivas e se mostram perfeccionistas”, afirma.
Por dentro do mundo deles
As características dos autistas de alto funcionamento
› Têm grande dificuldade de interagir com outras pessoas e realizar atos simples, como olhar nos olhos de alguém
› Exibem reações incontroláveis, desde estalar os dedos obsessivamente até gritar sem motivo e bater em si mesmos
› Costumam mostrar habilidades profundas e inexplicáveis em áreas específicas do conhecimento
› Aprendem tardiamente ações comuns na infância, como falar, andar, ler e escrever
› Specialisterne. Avenida Angélica, 2447 (conjunto 25), Consolação, tel. 3053-0471. Inscrições para a próxima turma, em março, pelo e-mail fernanda.lima@specialisterne.com.