Texto por Erika Sallum
Corpo atlético, ar de galã rebelde, dois piercings no peito e dezesseis tatuagens espalhadas pelos braços e costas. Ouvindo Ramones no último volume, o homem alto e ruivo encosta sua Pathfinder 96 na frente do elegante restaurante da Rua Barão de Capanema, nos Jardins. Cumprimenta todo mundo, dos manobristas aos garçons, e se dirige à cozinha, uma espécie de aquário instalado em um canto do amplo salão. Veste o jaleco branco com seu nome bordado em azul e, concentradíssimo, começa a preparar uma entrada com vieiras recheadas de raiz-forte, acompanhadas de palmito, lulas, fígado de pato e molho de coral. Enquanto aguardam os pedidos, os comensais não tiram os olhos de Alex Atala. Pudera: é por causa dele que estão ali. Aos 34 anos, esse paulistano nascido na Mooca se tornou o chef mais criativo e aclamado da cidade e a principal razão para que seu restaurante, o D.O.M., esteja sempre cheio. Em geral, de gente famosa, bonita e, principalmente, endinheirada.
Atala, proprietário também do pequeno Namesa, na Rua da Consolação, faz parte de uma categoria peculiar de chefs de primeira linha. São aqueles que, como se convencionou dizer, praticam a cozinha de autor. Criam a partir de receitas clássicas, utilizam ingredientes inusitados e, dependendo do talento, podem transformar a refeição numa deliciosa aventura gastronômica — ou num desastre para a digestão. No caso de Atala, há uma garantida viagem de sabores, texturas e aromas. Eleito no mês passado o chef do ano pelo júri de Veja São Paulo na edição O Melhor da Cidade, ele é um especialista em brincar com o paladar do cliente.
O menu de seu restaurante traz uma surpresa atrás da outra: ostras empanadas com sagu e ovas de peixe, foie gras (fígado de pato) acompanhado de purê de cará e gema de ovo quente, tapioca com queijo-de-minas e tomate confit… “Atala é o chef mais inovador que surgiu na cidade nos últimos tempos”, diz o gourmet Ennio Federico. “Ele consegue combinar ousadia, requinte e simplicidade de forma espetacular”, afirma J.A. Dias Lopes, colunista gastronômico de O Estado de S. Paulo.
A criatividade das receitas de Atala (veja três das mais simples nas páginas seguintes) é resultado de uma personalidade irrequieta. Filho de uma família de classe média e criado em São Bernardo do Campo, desde criança ele entendeu que não era igual à maioria. “Imagina como eu destoava, magrinho, branquelo e ruivo…”, conta. O nome de origem palestina não ajudava a aliviar a situação: Milad Alexandre Mack Atala. “Viviam tirando sarro e me chamando de ‘Milady’.” Mau aluno e com um quê de revolta, o adolescente logo aderiu ao estilo punk-rock. Furou sozinho a própria orelha, encheu as costas e os braços de tatuagens, fez um corte moicano no cabelo. “Ele sempre foi determinado ao extremo, teimoso até. Por isso, nunca o impedi de fazer o que queria”, conta o pai, Milad Atala, funcionário administrativo de uma indústria de borracha.
Com 14 anos, o jovem rebelde largou a família e se mudou para a capital. Foi quando conheceu a noite paulistana e passou a freqüentar casas como Carbono 14 e Madame Satã. Em pouco tempo, virou DJ do lendário Rose Bom Bom, onde tocava The Smiths, The Cure e outros hits dos anos 80. Sem muitas perspectivas de futuro, abandonou as baladas e foi viver na Europa. Para ganhar algum dinheiro, ele se virou como pintor de paredes na Bélgica. Lá, ouviu falar de um curso profissionalizante de gastronomia. “Não tinha o mínimo interesse pela área nem sabia cozinhar nada”, lembra. “Apenas vi um jeito de me sustentar sem precisar pintar paredes.” Com o diploma na mão, conseguiu trabalho em restaurantes na Bélgica, França e Itália, fazendo de tudo, de lavar pratos a cuidar das sobremesas. Aos poucos, percebeu que levava muito jeito com as panelas. “Minha grande escola foi a prática, observando os chefs e cada detalhe das cozinhas”, diz ele, que, de quebra, aprendeu a falar inglês, francês e italiano.
Definiu então o que seria o rumo de sua carreira: jamais se dedicar a um só tipo de comida. “Sempre me recusei a ser um chef brasileiro especializado em culinária francesa ou italiana.”
De volta a São Paulo, após um período um tanto obscuro no restaurante Sushi Pasta, foi chamado para renovar o cardápio do Filomena. A casa, no Itaim Bibi, havia sido inicialmente projetada como um bar com poucas opções de comidinhas, mas a chegada de Atala fez com que se transformasse em um lugar concorrido. O público e a crítica não ignoraram aquele novo chef que servia no couvert um apetitoso alho assado (sucesso até hoje no D.O.M.) e recheava o cardápio com pratos inventivos como manga grelhada com pimenta-branca e molho de maracujá. Nem todas as suas receitas agradavam, é verdade. “Por causa de um certo deslumbramento com técnicas e ingredientes, ele muitas vezes produziu combinações bizarras”, afirma Josimar Melo, crítico de restaurantes da Folha de S.Paulo. “Mas sua jovialidade e sua liberdade de criação sempre foram admiráveis.”
A breve passagem de Atala pelo 72, no Itaim Bibi, foi marcante. Em 1998, durante uma rápida visita à cidade, integrantes da tradicional escola de gastronomia francesa Le Cordon Bleu jantaram lá. Maravilhados com o menu, que incluía peito de pato com jenipapo ao palmito fresco e pargo com canela e risoto de abacaxi com melissa, chamaram-no para dar uma aula em Paris. Foi a primeira vez que um latino-americano recebeu o convite. No ano seguinte, Atala inaugurou o Namesa. Com ambiente moderninho e uma mesa comunitária como atração, serve pratos mais simples a preços razoáveis.
A consagração veio com o D.O.M., aberto juntamente com dois sócios meses depois. É ali que Atala se realiza e coloca em prática suas idéias mais surpreendentes. “Quero que as pessoas venham aqui para ter emoção”, afirma. “Para isso, tenho de provocar seu apetite em todos os níveis, do sabor à aparência do prato.” Ao lado de itens sofisticados como foie gras, vieiras, javali e pato, parte do menu compõe-se de ingredientes, digamos, pouco freqüentes em restaurantes chiques. Jenipapo, arraia, jiló, quiabo, cará, caqui e sardinha são revalorizados nas caçarolas de Atala. “É muito corajoso de sua parte usar produtos que, apesar de ótimos, são desprezados pelos brasileiros”, declara o chef italiano Salvatore Loi, do Fasano. “Com talento, ele está abrindo um caminho novo para a alta gastronomia.” Por tanta originalidade, paga-se caro — aliás, muito caro. Sem contar as bebidas, o couvert e a taxa de serviço, um casal que pede entrada, prato principal e sobremesa não gasta menos de 160 reais no jantar.
Só o couvert custa 9 reais por pessoa. “A qualidade da comida e do atendimento justifica os valores cobrados”, limita-se a dizer Atala. A clientela não reclama. Pelo contrário: são longas as filas de espera à noite, e recomenda-se fazer reserva com antecedência.
Atala quase não arreda pé de seu restaurante, comportamento cada vez mais raro na atual era dos chefs-celebridades, que freqüentam colunas sociais, dão consultoria, trabalham como guia em viagens gastronômicas ou vão cozinhar na casa de milionários. Salvo os domingos, único dia de folga, ele praticamente mora ali. Chega antes das 10 da manhã e só pára quando termina o horário de almoço, lá pelas 16 horas. Nos fins de tarde, faz reuniões, cuida das encomendas, vistoria o salão — nem um amassadinho nas toalhas de linho escapa de seu crivo. Reserva dois dias por semana para almoçar, no próprio D.O.M., com o filho, Pedro, de 8 anos, nascido de seu primeiro casamento. A jornada recomeça às 19 horas, no jantar, e se estende até depois da 1 da madrugada. Além de cozinhar, ataca de anfitrião. Passeia entre as mesas, esclarece dúvidas dos clientes, abraça e beija os mais íntimos. Um grupo pediu salada com trufas brancas? Lá vai ele ralar pessoalmente o precioso ingrediente no prato de cada um.
Para ajudá-lo, há a brigada de doze cozinheiros, mais cinco estagiários, trocados a cada mês, vindos de faculdades e restaurantes do país inteiro. Perfeccionista, o chef não aceita falhas de sua equipe e irrita-se quando encontra algo que não lhe agrada. Nesses momentos, os funcionários respiram fundo, olham para o pequeno altar com imagens de Santo Expedito e São Jorge, montado num canto da cozinha, e rezam. “Ele ensina muito bem, mas depois vira um carrasco se alguém erra”, comenta o chef Nilson de Castro, do Le Vin Bistro, que trabalhou com Atala no Filomena. “E ai de quem altera as receitas dele…”
Seu tipo físico, bem distante do estereótipo do chef baixinho e gordinho, tem rendido a Atala uma considerável lista de admiradoras. Algumas um tanto ousadas. Certa vez, uma delas fez plantão por vários dias no bar do restaurante, esperando ser correspondida. “No começo era chato, mas agora já me acostumei com o assédio”, conta a mulher de Atala, Marcia Lagos, gerente de produto da grife Lita Mortari. Grávida de gêmeos, que devem nascer no fim do mês, ela conheceu o marido três anos atrás, ao ser contratada como hostess da casa. Quando pode, o casal viaja para a praia ou para o campo, onde Atala se dedica à pesca e à caça, dois de seus hobbies prediletos (o outro é ouvir jazz, especialmente Chet Baker). “Não há nada melhor na vida que preparar um peixe que eu peguei”, suspira ele, que já percorreu boa parte do litoral brasileiro atrás de atum e badejo. Quando está de folga em São Paulo, Atala prefere refeições simples.
Nos domingos à tarde, o chef mais badalado da cidade pede pizza por telefone ou vai com o filho ao McDonald’s. “São momentos em que quero esquecer de comida complicada”, confessa. “Nessas horas, devoro mesmo um McLanche Feliz.”.