Rapper cosmopolita
Aos 23 anos, Werá Guarani canta em sua língua-mãe o trap — misto de rap e música eletrônica. O rapaz divulga seus trabalhos pela internet e, apesar de não acumular milhares de seguidores, caiu nas graças de produtores. Assim, conseguiu sair da aldeia para se apresentar em festivais como o Lollapalooza (em uma participação no show da banda americana Portugal. The Man) e até na Alemanha. Entre suas faixas, aparece Índios do Vulcão, que fala sobre a batalha pela terra que se arrasta desde a década de 80. De acordo com a Funai, foi demarcada uma área de 532 hectares, mas ainda está na Justiça para ser regularizada. Por ora, os guaranis do Jaraguá vivem em um território de 1,7 hectare. “Existe uma guerra, mas somos fortes”, diz Werá, dentro de seu estúdio musical construído em formato de oca. “Não sou um magnata do rap, mas nem tenho essa vocação. Jamais sairia daqui.”
Da escravidão ao artesanato
Irene Mendonça, a Paramiri, vende coloridos adornos e cestas a visitantes do local e também por meio de uma página no Facebook, chamada Tekoa Ytu. Usa miçangas, cordões, penas e outros materiais que compra no centro da cidade (nada vem da mata, para preservá-la, apenas folhas para chás). “Dei uma guinada em minha vida”, diz a artesã, de 57 anos, que fatura cerca de 400 reais por mês e conta com a ajuda da mãe, Margarida, ou Potã, 79, no ofício. Em meados de 1980, ela fugiu com a roupa do corpo da fazenda em Mato Grosso onde o marido (Evaristo, o Tupã Mirim, morto mais de vinte anos atrás em um acidente de carro) trabalhava em situação análoga à escravidão. “Ele arava a terra em troca de comida e éramos ameaçados por capangas armados.” Seguiu para a aldeia Boa Esperança, no Espírito Santo, onde teve seus quatro filhos. Após a morte do companheiro, ela e a família se mudaram para o Jaraguá. “Aqui vivo em paz, em meio à natureza. Sou uma mulher realizada.”
O guerreiro da educação
O Guarani, clássico de José de Alencar que descreve o amor entre o índio Peri e a loira Ceci, não comove a turma no Jaraguá. “Lemos obras de Olívio Jekupé, sobre nosso povo. Além disso, costumamos casar com pessoas da tribo porque os juruás são preconceituosos”, diz Márcio Boggarin, 35, o Werá Mirim, referindo-se aos brancos. A despeito das dificuldades do local, ele mostra força e luta para manter o ensino de sua língua na escola de educação básica na tribo. “Hoje, existe só um professor de guarani para todas as crianças”, atesta. Werá também promove oficinas exclusivas entre os índios: ensina a construir as casas da aldeia, com barro e madeira (reciclada, para não desmatar), e faz violinos, ou rabecas, como costuma chamá-las. São vendidas por ali mesmo e custam cerca de 300 reais para a comunidade e 500 para visitantes. “Os índios foram historicamente massacrados e merecem recompensas.”
Protetor das abelhas
“Aprendi com meu cunhado, um sábio na tribo, que não precisamos temer essas abelhas porque elas não têm ferrão”, avisa Thiago Henrique, 25, o Karaí Djekupé. Há dois anos, ele, formado no ensino médio, dedica-se à criação da espécie jataí, considerada protetora dos guaranis por sinalizar a presença de predadores. Em meados de 2017, o jovem decidiu ocupar um terreno da aldeia onde ficava uma espécie de lixão. “Em um sonho, eu me vi limpando essa área e percebi que se tratava de uma missão dada a mim por Nhanderu”, explica, referindo-se a seu deus supremo. Djekupé — que se sustenta com artesanato — recuperou o pedaço sem ajuda, ergueu nele casas de barro e cria as jataís para ajudar na polinização do lugar. “No futuro, vamos comercializar o mel a quem se interessar, mas sem pressa nem prazos. A natureza tem seu tempo.”
A salvação do romântico pajé
Todos os dias, ao pôr do sol, dezenas de índios e até alguns amigos juruás (brancos) passam cerca de duas horas nas disputadas cerimônias conduzidas pelo pajé Isaac Karaí, 56. São conversas guiadas por um cachimbo. Apesar das amizades, o romântico líder busca uma nova paixão. “Quando me perguntam como se diz ‘amor’ em guarani, respondo ‘mulher’. Elas são deusas”, derretese. O chefe passou um sufoco até aceitar sua vocação, há quatro anos. “Eu não prestava: só queria saber de álcool, cocaína, maconha… Tentei o suicídio e minha esposa me abandonou”, conta ele, agora recuperado. Descendente de lideranças, lembra desde cedo ter sonhos premonitórios, mas preferir o “cotidiano mundano”. Até que foi chamado de txamoi (pajé) por uma criança. “Era um sinal. Disse a mim mesmo que, se mais cinco meninos também me cumprimentassem assim, aceitaria a atividade.” Dito e feito.
Publicado em VEJA SÃO PAULO de 05 de junho de 2019, edição nº 2637.