É provável que a única pessoa no Brasil que não saiba que Neymar está sendo acusado de estupro seja o Queiroz, que anda sumido. Considerando a fama do jogador, claro que uma acusação dessa gravidade dominaria rapidamente os meios de comunicação.
Desde a divulgação da acusação, muito tem se opinado sobre a culpa ou a inocência de Neymar e de Najila. E, no meio desses julgamentos – de famosos, de especialistas e de anônimos –, muitas afirmações equivocadas são ditas acerca de elementos particulares ao caso e mesmo sobre valores gerais relacionados ao tema do estupro.
Vou transcrever como exemplo a fala de um advogado que deu seu parecer sobre o caso na imprensa. Manterei sua identidade em sigilo já que o foco do meu texto não é discutir a conduta deste especialista particularmente mas sim refletir sobre a conduta de todos nós diante de casos de interesse público e diante do comportamento do outro.
Assim falou o advogado em um vídeo gravado por ele próprio: “Não me parece até o presente momento que existam provas do cometimento do crime de estupro previsto no artigo 213 do Código Penal, que exige a prática da conjunção carnal ou de qualquer ato libidinoso mediante constrangimento derivado de violência ou grave ameaça. O que se tem noticiado pela rede social ou pela imprensa até o presente momento, sobretudo após as informações prestadas pelo atleta, é que a relação sexual foi debatida entre ambos, discutida e consentida. E quando se tem sexo consentido entre pessoas maiores de idade, não há que se falar na prática do crime de estupro.”
O profissional inicia sua explanação já dizendo que não parecem haver provas até o momento de que Neymar tenha estuprado a garota. Se ele fosse o delegado responsável pela investigação e, por isso mesmo, tivesse acesso ao inquérito e às provas apresentadas, suas afirmações teriam alguma validade. Mas, não tendo parte nas investigações, sua fala quase conclusiva a respeito da situação é ilação que não cabe em um caso tão grave e delicado como esse.
O advogado explicita então a fonte das informações que ele levou em conta para elaborar sua análise e seu julgamento: redes sociais e imprensa. Não há problema que um especialista se baseie em informações da mídia para comentar um caso de interesse público, mas, se o faz, é preciso ter responsabilidade, sem lançar afirmações irresponsáveis que induzam os ouvintes leigos a concluírem coisas que não possuem fundamentação suficiente para tal.
A mesma responsabilidade cabe ao jornalista, que deve selecionar quais informações são relevantes e quais não são. Também deve escolher a maneira mais adequada de divulgar uma informação. Ainda assim, a publicação da notícia de forma inadequada pelo meio de comunicação não isenta o especialista de sua responsabilidade de comentar o conteúdo de maneira parcimoniosa, técnica e adequada.
Mais adiante o advogado reforça que provavelmente não se trata de um caso de estupro “sobretudo após as informações prestadas pelo atleta” de que o sexo foi consentido. Novamente existe um posicionamento conclusivo dele feito de maneira irresponsável. Quando ele diz que o atleta já explicou o que houve, ele ignora um aspecto central na interpretação dos fatos. Ora, Neymar e Najila têm interpretações diferentes sobre como as coisas aconteceram. Nenhuma narrativa deve ser considerada mais fidedigna com base em quem a contou. Novamente cabe à força policial investigar os elementos que reconstruam os fatos para que o juiz, este sim, possa julgar os atos descritos na acusação.
Ainda sobre o comum acordo para o sexo, é lamentável quando alguém usa o consentimento prévio como garantia de que uma mulher não foi violentada. O sexo não se define por um consentimento único e simples. O sexo é um ato compartilhado que depende de consentimento contínuo. Uma mulher pode começar um ato sexual com seu parceiro e, depois de um longo tempo transando de forma intensa, prazerosa e sedenta, querer interromper. Ela simplesmente não quer continuar. E se ela for violentada e forçada a continuar no ato, ela foi sim estuprada. Isso é simples de ser entendido. Então temos de aprender isso de uma vez por todas e jamais esquecer. Um consentimento prévio em hipótese alguma prova que não houve estupro. E, novamente, apenas o fim do inquérito policial trará elementos sólidos que permitam ao magistrado julgar o caso.
O caso Neymar e Najila mostra que as lições que podemos extrair das eleições de 2018 com as notícias falsas não foram ainda aprendidas por nós. O poder destrutivo do julgamento precipitado alimentado pela mídia nos últimos anos e reverberado nas redes sociais não foi ainda compreendido por nós. Não aprendemos com o caso Escola Base. Não aprendemos com os muitos casos de linchamento deflagrados por boatos (alguns recentes como aconteceu no México e na Índia).
O episódio Hated in the Nation (“odiados pela nação”), da série televisiva britânica Black Mirror, explora bem esse processo tão atual da vida em sociedade. Postagens voltadas para o acúmulo de cliques, a divulgação de informações imprecisas, a pressa em julgar, a força dos dados agrupados… O episódio brinca com a possibilidade de inconscientemente as pessoas determinarem a morte de alguém ao encaminhar hashtags de ódio. O filme futurista está cada vez mais próximo de se tornar atual.
Por fim, cada um de nós precisa refletir profundamente sobre como tratamos as informações que recebemos pelas redes. Quando você encaminha uma foto viral de alguém que você não conhece só pela piada, você pode estar fazendo mal sem saber. Se você receber algo cuja fonte é desconhecida, simplesmente não repasse. Mesmo que o conteúdo ajude a sustentar uma convicção ou uma crença sua.
Neymar e Najila já foram julgados. Já são odiados ou amados pela nação pelos seus comportamentos. Cada um julga baseado na sua percepção e nas suas crenças. A verdade nesse caso parece não importar. Uma pena.