Poucos assuntos são tão mal interpretados ou mal-entendidos que a densidade urbana em São Paulo. Bairros famosos pela qualidade de vida, como a portenha Recoleta, o barcelonês Eixample e o nova-iorquino Upper West Side têm quatro vezes o número de habitantes por quilômetro quadrado que o Itaim e Moema (verticalizados, mas com pouca gente morando, comparativamente).
As leis paulistanas criaram os tais paliteiros pouco densos e com uma raquítica vida na calçada. Urbanistas responsáveis pelos últimos Planos Diretores (a pose é inversamente proporcional aos resultados das leis) difamam o conceito de densidade de forma demagógica, o que complica qualquer debate razoável sobre como criar uma metrópole mais compacta, com menos viagens de carro e menores deslocamentos de casa para o trabalho. Tema que exige comparação de dados.
EIXAMPLE, BARCELONA
36 000 habitantes por km²
Prédios com oito andares em média, sem recuos frontais ou laterais, todos geminados, com muitos apartamentos. A insolação e a ventilação são garantidas pelos miolos das quadras. Comércio no térreo — não existe “zona estritamente residencial”. A maioria das viagens dos cidadãos pode ser feita a pé ou com transporte público — tudo acaba sendo mais perto, em uma cidade pouco espalhada. Há uma árvore a cada 8 metros de calçada. O desenho simétrico e replicável do urbanista Ildefons Cerdà continua invejado, 160 anos depois de sua criação.
ITAIM BIBI, SÃO PAULO
9 300 habitantes por km²
O típico paliteiro paulistano. Dezenas de prédios magrinhos e altos isolados entre si, desperdiçando muito espaço entre eles. Ao contrário da uniformidade de Barcelona, sem recuos frontais ou laterais, a legislação paulistana exige o oposto: com mais de três andares, recuos de 3 metros em cada lado e 5 metros na frente. A taxa máxima de ocupação é de 50% a 70% do lote (e haja churrasqueira, playground, estacionamentos e áreas pouco usadas, incentivadas pela prefeitura).
Uma boa parcela dos edifícios do Itaim é de escritórios e com lajes corporativas de pouca capacidade. Pela exigência legal de muita área para se verticalizar mais, a cidade praticamente não tem arranha-céus, espalhando em diversas torres o que caberia em uma sozinha. Os dois maiores prédios da capital, Mirante do Vale e Italia, têm mais de cinquenta anos e menos de 175 metros. Na América Latina, Cidade do México, Cidade do Panamá, Bogotá, Lima, Santiago, Buenos Aires já contam com torres mais altas que as paulistanas. Entre as dez maiores regiões metropolitanas do mundo, apenas São Paulo e Cairo não possuem um único prédio com mais de 170 metros. Dacca, em Bangladesh, e a indiana Délhi já têm os seus.
MOEMA, SÃO PAULO
9 200 habitantes por km²
Verticalizado especialmente a partir da década de 70, tem todos os cacoetes pró-espraiamento do primeiro Plano Diretor, aprovado durante a ditadura militar, que estimulava o uso do carro para tudo. Mais inspirado nos subúrbios americanos que nas densas cidades europeias. Como verticalização não é sinônimo de densidade, é um bairro cheio de prédios, mas pouco populoso.
Esse plano estipulava até mesmo limite máximo para o número de unidades — o que fez que a maioria dos edifícios tivesse apartamentos grandes e pouca opção de compactos. Por décadas, as únicas quitinetes da cidade estavam em prédios anteriores aos anos 1970. Apesar de parecer muito denso, Moema tem proporcionalmente apenas um quarto dos habitantes da Recoleta por quilômetro quadrado.
Em muitas áreas do bairro, nem prédios de três andares podem ser erguidos. É o caso das avenidas República do Líbano, Quarto Centenário, Indianópolis (algo também comum em várias avenidas centrais da cidade, como Brasil, Europa, Pacaembu, Sumaré, Dom Pedro, e a Rebouças e a Nove de Julho do lado dos Jardins). E, ainda, pelo menos 20% de cada lote precisa ser reservado para “área permeável”. A tal parcela dos prédios magrinhos em terrenos idem acaba virando um pequeno gramado na frente, instalado sobre a laje da garagem. Nada permeável, é claro — nada a ver com as praças portenhas. E afasta a vida da calçada: sempre surge um muro ou grade isolando a grama.
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EAST VILLAGE, MANHATTAN, NOVA YORK
32 000 habitantes por km²
Bairro de imigrantes e boêmios por todo o século passado, tem prédios de até seis andares, em média. O rezoneamento de 2010 aprovou um limite de doze andares. Sem recuos e com muitas unidades por andar. Tem a mesma população da Lapa, em uma área cinco vezes menor. Com um território tão otimizado, sobrou mais espaço para o verde: no raio de 1 quilômetro, tem o parque da Tompkins Square, o da Washington Square, o Sara Roosevelt Park, o East River Park e cerca de quinze hortas comunitárias em pequenos terrenos da prefeitura.
PACAEMBU, SÃO PAULO
3 900 habitantes por km²
Uma das mais baixas densidades demográficas de São Paulo. São gastos mais de 1 milhão de metros quadrados para abrigar apenas 4 000 pessoas (equivalente à população do Copan e do Louvre, edifícios vizinhos, entre a Ipiranga e a São Luís). É fácil checar quem consome mais energia, mais água e precisa de carro para tudo — até na Avenida Pacaembu, padarias e cafés são proibidos. Já nos dois gigantes do Centro, de Niemeyer e Artacho Jurado, seus moradores podem fazer quase tudo a pé ou de transporte público. Há escala para tal. Um negócio no Pacaembu de hoje não vingaria diante de calçadas tão vazias, em um bairro tão dependente do automóvel, tão prejudicial ao meio ambiente.
RECOLETA, BUENOS AIRES
35 000 habitantes por km²
Não faltam ar livre, verde e cultura no tradicional bairro portenho. Mesmo com o famoso cemitério, os bosques do bairro, cercados pelo Centro Cultural Recoleta e pelo Museu de Belas Artes, pela Biblioteca Nacional e pelo parque Thays, que rodeia a Faculdade de Direito, a Recoleta é bem mais densa que qualquer bairro paulistano. É fruto do trabalho do paisagista parisiense Charles Thays, que dirigiu o departamento de parques e avenidas da capital argentina por 22 anos: a cada cinco quadras hiperdensas de moradia, há uma praça verde no meio. São dezoito áreas verdes em 5,4 quilômetros quadrados, com 190 000 moradores (a população de Pinheiros e a da Vila Mariana somadas em um terço do espaço dos dois). Poupar terras virgens é isso.
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BUTANTÃ, SÃO PAULO
4 336 habitantes por km²
Como em um muitos loteamentos com quase 100 anos da Cia. City, a maior parte do território é para casas com apenas uma família, sem prédios ou comércio. As ruas curvas são desenhadas para dificultar o trânsito de motoristas, como se não fizessem parte do sistema viário da cidade. É uma lógica perversa: ter as benesses da vida na metrópole, sem querer compartilhar os problemas, que são empurrados para outros bairros. Mesmo perto do metrô, há muitos terrenos e espaços não adensados.
LEBLON, RIO DE JANEIRO
24 000 habitantes por km²
O autêntico mar verde pelas ruas do Leblon demonstra que alta densidade convive muito bem com túneis de árvores (como nas paulistanas avenidas São Luís e Higienópolis). É mais uma prova de que é possível abrigar muita gente sem precisar de espigões por todos os lados. A lição do Leblon: otimizando cada espaço, sobra área para o verde, e o número de andares pode ser limitado (no bairro, a média é de oito, com algumas exceções de onze, na Ataulfo de Paiva). E o leblonense faz tudo a pé.
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Publicado em VEJA São Paulo de 16 de dezembro de 2020, edição nº 2717