O relógio marca mais de 9 horas da noite quando atores da Cia. Mungunzá de Teatro ensaiam as últimas passagens de Cena Ouro — Epide(r)mia no Teatro de Contêiner, sede do grupo erguida no meio de um dos principais fluxos da Cracolândia, na Santa Ifigênia, no Centro da capital. As persianas que cobrem as paredes laterais do prédio, feitas de vidro, se abrem, revelando poucos carros e os usuários que passam pelas ruas. Cinco anos depois de Epidemia Prata, peça com relatos da companhia sobre a atuação no território, a Mungunzá traz agora sete ex-moradores da região para a cena na nova montagem, em cartaz até o dia 3.
O que era para ser uma reformulação do espetáculo, o primeiro da trupe após a inauguração da sede no bairro, em 2017, acabou virando uma outra obra. Criada para participar do Festival Pop Rua, iniciativa do Sesc São Paulo e do Museu da Língua Portuguesa junto à prefeitura municipal para levar cultura às pessoas em situação de rua, a peça fez duas sessões em agosto e bateu o recorde de público do Teatro de Contêiner, com cerca de 300 pessoas. “Além da plateia, que tem 99 lugares, muitos assistiram do lado de fora, pelas paredes de vidro”, conta Marcos Felipe, um dos fundadores do grupo.
Os sete não atores, que se unem no palco com outros sete integrantes da companhia, são artistas de diversas áreas. A maioria conheceu a Mungunzá a partir de coletivos de assistência instalados no espaço. É o caso da dançarina e contorcionista Danee Amorim, 32, mulher trans que foi acolhida no Tem Sentimento, coletivo de costura voltado para a geração de renda, onde hoje trabalha e mora. “A peça me despertou o gosto pelo teatro físico, no qual quero me especializar”, diz. O artista plástico Cleiton Ferreira, 44, ou Dentinho, como é conhecido na região, conheceu a Mungunzá pouco tempo depois de perder a visão do olho esquerdo após ser atingido por uma bomba de gás durante uma megaoperação da polícia na Cracolândia em 2017. “Assisti à Epidemia Prata nove vezes. Quando estava assistindo, não usava crack. O teatro me trouxe perspectiva de vida”, conta.
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A montagem mistura cenas da primeira peça com os depoimentos dos não atores. Agora, o petrificado da prata, uma referência à pedra de crack e ao modo como a sociedade enxerga os habitantes da Cracolândia, se funde ao ouro, um metal valoroso. “O espetáculo abre compreensões sobre o território que a própria realidade não consegue. Mostramos que aqui tem vida, tem talento, que é possível garimpar a pedra e encontrar ouro”, define Tânia Granussi, que divide a direção com Cris Rocha e Georgette Fadel. Depois da temporada no Teatro de Contêiner, a companhia se prepara para apresentar Cena Ouro no Festival C’est Pas Du Luxe, em Avignon, na França, evento destinado a projetos artísticos que apoiam pessoas em situação de vulnerabilidade social.
Publicado em VEJA São Paulo de 20 de outubro de 2023, edição nº 2864