Quando veio o anúncio de que a pandemia tinha chegado ao país e todos os eventos deveriam ser cancelados para conter a propagação do vírus, Nando Reis ficou assustado. Tinha todos os fins de semana de 2020 já reservados com apresentações, que foram desmarcadas. “Fiquei preocupado e ainda estou”, conta Nando. “Ainda mais porque é remota a chance de a minha atividade voltar enquanto não houver a vacinação, não apenas a vacina.” A estratégia foi tentar se movimentar como fosse, com lives, drive-ins, vídeos, o que pudesse surgir. “Eu fico muito feliz quando aparece trabalho”, afirma.
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O próximo, aliás, já está marcado. Na sexta-feira, 25, ele divide uma live com a cantora Duda Beat, em uma transmissão do Circo Voador, que estará sem público, para o projeto Devassa Tropical Ao Vivo e desta vez irá arrecadar fundos para o Instituto Salve a Graxa, de Belo Horizonte, e Juntos com a Técnica de Recife. O show pode ser visto no canal do Youtube da Devassa, a partir das 21h.“Ensaiando sozinho, eu me aprofundei no trabalho dela e fiquei muito feliz. Ela traz uma parte rítmica eletrônica com uma carga tradicional do Recife”, diz. “Me atrai o artista que combina elementos distintos e cria algo. Ela é muito talentosa”, completa.
Isolado com a família em seu sítio na cidade de Jaú, Nando conta que se organizou tanto para a profissão quanto para outros assuntos. Manteve seus vídeos semanais, que publica há três anos no Youtube, mesmo não conseguindo reunir sua pequena equipe e apostou numa agrofloresta. Sim, agrofloresta. “É, né, bicho. Tem um filho da p. destruindo tudo. Temos que fazer a nossa parte. Algumas ações têm de ser feitas mesmo que seja num microcosmo. Não dá para ficar parado”, diz.
Conta também que foi surpreendido com os drive-ins, afinal, qual músico imaginou fazer um show para carros? “A buzina sempre foi antipática. Se você buzina é porque está irritado. Se alguém buzina para você, te irrita. Ouvi-las foi estranho no primeiro momento. E então, ela se ressignifica, associa-se a algo simpático. É desconcertante porque você passa a relacionar isso de forma inesperada e é transformador, o que me agrada”, diz.
Segundo ele, essas transformações das banalidades diárias para algo maior e diferente são poéticas. “De certa maneira, é isso que eu faço quando escrevo música, falo do dia a dia, daquilo que não se presta atenção, que estamos acostumados a ver de um jeito e pode ter um sentido oculto. É rico”, diz.
E foi no cotidiano do isolamento que surgiu Espera a Primavera, lançada na sexta, 18. Nos créditos, aparecem nomes como Jack Endino (produtor do disco Bleach, do Nirvana), Lulu Santos, Walter Villaça, nas guitarras, Chris Robinson, do Black Crowes, e Sebastião Reis, nos violões, as linhas de bateria feitas por Barret Martin e percussões de Pupillo, Felipe Cambraia nos baixos, Alex Veley nos teclados, Theo Reis e a cantora Céu nos vocais. Toda essa turma fez os registros distantes e produzidos depois por Nando, Pupillo e Cambraia, em São Paulo.
“Era um propósito meu, para essa música, reunir pessoas tão distintas e distantes mas com afim. Não apenas para a gravação, mas com a ideia que a música transmite, de liberdade de escolha, de rechaçar o engessamento imposto de que família é formada de papai, mamãe e filhinho, e que meninas vestem rosa e meninos vestem azul”, diz. “São convenções ultrapassadas e desrespeitosas. É 2020, temos assuntos mais importantes para discutir”, afirma.
Se Espera a Primavera pode trazer a mensagem de esperança, do fim da pandemia e de que logo poderemos reencontrar nossos queridos com segurança, Nando ainda dá mais um significado a ela, “análoga à pandemia e ao isolamento”, mais amplo e em tom político: a situação do país. “Assim como a quarentena, ficamos privados de algumas coisas, do que conquistamos, a gente percebe o quanto elas são importantes. Está acontecendo isso neste governo. Eu vivi uma ditadura. E é inegável que há um autoritarismo, uma ideia de imposição que não é condizente com os tempos atuais, nem mesmo com a vocação do Brasil e sua diversidade. Além de ser injusto, é preconceituoso, discriminatório”, afirma. Para ele, ainda é preciso paciência, por mais dois anos. “Bolsonaro é um erro incontestável e que não se repita o erro. Quando você erra, tende a não repetir. Se isso acontecer, o que posso fazer? Música, e que com ela venha a transformação.”