Depois de uma aula, sentava-se no banco de madeira, que obriga o ocupante a manter a postura ereta, em seu escritório. Abre a primeira gaveta e retira o amarelado (e remendado com uma fita isolante) dicionário. Anotava palavras que lhe interessavam, mas, mesmo assim, o português não era seu forte. “Ele conseguia transmitir ensinamentos enormes, embora falasse um português péssimo”, diz o jurista Modesto Carvalhosa, 89, acompanhado dos risos da esposa Claudia, 69, aluna do mestre por mais de trinta anos. Tudo bem. Taketo Okuda encantou figurões e coleciona discípulos, que se referem a ele com respeito: samurai.
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O sensei da Butoku-Kan, na rua Cunha Gago, 798, descansou em 31 de janeiro, aos 79 anos. Okuda terá a vida retratada no documentário Um Espírito em Brasa, com lançamento no segundo semestre de 2022 pela Elo Company. É história de filme, mesmo. Veio do Japão para o Brasil na década de 70, em missão da Associação Japonesa de Karate, para disseminar no país o estilo shotokan.
Discípulo de Masatoshi Nakayama (que, por sua vez, foi aluno de Gichin Funakoshi, pai do caratê moderno), não tinha o apoio da família para se embrenhar nos, então, pesados treinos. Replicou em São Paulo, inicialmente no bairro do Ipiranga, os ensinamentos voltados para os que querem ser mestres. “Às vezes, em uma aula, a gente fazia 1 000 agachamentos. Durante uma semana, fui costurar o meu rosto três vezes no pronto-socorro. Ele forjou uma turma que foi campeã paulista de 1973 até 1977”, conta Carlos Rocha, 72, dono de uma academia na Vila Mariana.
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Okuda, no entanto, mudou. afastou-se das competições na década de 80 e modificou a metodologia. “De cara, a gente fala que aqui não se compete. É voltado para a parte de energia e a meditação, que é o que o sensei desenvolveu”, explica Frank Seiji Kaduoka, 32, que assumiu as aulas da Butoku-Kan, com turmas para adultos e crianças. “A maior competição, no pensamento do sensei, era o aperfeiçoamento pessoal”, diz um dos amigos mais próximos do mestre, Ari Timerman, 75, médico e ex-presidente da Sociedade de Cardiologia paulista.
Foi essa mudança que segurou alunos por décadas. “Era um aprimoramento espiritual. E talvez tenha sido o grande fator para a gente ficar cinquenta anos juntos”, lembra José Augusto Lima de Sá, 68, ex-diretor internacional da Sadia. “Foram 32 anos de aula. Minha esposa também frequentou, minha sogra e meus três filhos”, conta Daniel Feffer, da influente família de empresários do setor do papel e celulose.
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A proximidade com os alunos era coroada com jantares em endereços como a Cantina Gigio, desde que a escola se mudou para Pinheiros, nos anos 90. “Eu era presidente do Banco do Brasil, morava em Brasília e treinava aqui três vezes por semana”, lembra Paulo Caffarelli, 55, estudante da academia há oito anos. “Sou um aluno devotado. E ainda não voltei no dojo, porque acho que esse momento vai ser muito difícil”, diz o engenheiro e fundador da empresa GranBio, Bernardo Gradin, aluno por quinze anos.
Tantos discípulos influentes, no entanto, não mudaram Okuda. “Ele corrigia o aluno e falava: ‘Totalmente errado’. E movia a mão da pessoa alguns centímetros”, conta a esposa Eliana, que o conheceu nas aulas. “No nosso primeiro encontro ele falou ‘posso pegar na sua mão?’ e eu disse pode”, se diverte. O sensei teve dois casamentos. Com a primeira esposa, Ramako, falecida, teve Tetsuo (morreu em 2013, aos 38 anos) e Keiko, 49. Com Eliana Niski, com quem se casou em 2008, vieram as gêmeas Sophia e Isabella, de 13 anos. “Ele era louco pelas meninas. Todo domingo levava a gente para um haras, para elas andarem a cavalo.”
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A morte de Tetsuo acendeu um estalo na cabeça da cineasta Débora Mamber, 45. “Fiquei pensando que a história iria se perder”, diz ela, também carateca. “Eu fui falar com ele supertímida, para fazer um filme. E ele só falou ‘tá bom’, sempre muito lacônico.” O longa-metragem, na fase final de edição sonora, vai narrar a história do caratê e os ensinamentos de Okuda, pela perspectiva de Débora.
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Quando não estava no dojo, lendo sobre xintoísmo, judaísmo e caratê, ou treinando fervorosamente escalas na flauta transversal, seguia rumo ao sul de Minas Gerais, onde passava horas em trilhas, caminhando na natureza. Há dois anos, adoeceu. Era mielodisplasia, que resultou em uma leucemia, tratada com quimioterapia. “No começo ele não aceitava visitas. Falava ‘não, samurai não pode demonstrar fraqueza’”, diz Frank Seiji. O atual encarregado da Butoku-Kan é formado em arquitetura e urbanismo e era aluno de Okuda desde criança. Na faculdade, recebeu o convite para trabalhar com o mestre. Cogitou largar o Mackenzie, mas concluiu o curso. Atuou um ano na área e, depois, abraçou de vez o caratê. “Nesse ano ele começou a receber visitas e, nos últimos dias, chegou para mim e falou: ‘Seiji, continua’. Falei que ia continuar treinando e ele, ‘ótimo’, e só”, lembra, sorridente.
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Em 31 de janeiro, Okuda faleceu no Hospital Sancta Maggiore Dubai, na Zona Sul. “A última viagem que a gente fez foi para Curaçao. E lá, no fim do mundo, um cara em um barco grita: ‘Sensei, sensei’, o reconhecendo. Isso acontecia muito”, lembra Eliana. Okuda, no entanto, vai viajar mais uma vez. Quando a família receber as cinzas, levará o patriarca para Juquehy, em São Sebastião. Próximo de uma pedra, no lado direito da praia, como ele pediu, será libertado ao mar, no mesmo lugar das cinzas de seu filho, Tetsuo.
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Publicado em VEJA São Paulo de 16 de fevereiro de 2022, edição nº 2776