A chuva se aproximava do bairro da Vila Maria naquela noite de segunda-feira, início de outubro, mas a equipe da futura série Cidade de Deus, assim como os moradores que observavam as câmeras e o corre-corre da filmagem, não parecia se importar.
Crianças, jovens e adultos prestavam atenção à cena, na qual mãe e filho conversavam na varanda de uma casa. Deu tempo de concluir a gravação antes do temporal, e assim terminava mais um dia em que as ruas da vizinhança eram tomadas por atores e equipamentos.
Quem assistir à trama, ainda sem previsão de estreia, acompanhará uma história que se passa na icônica comunidade carioca, imortalizada no filme de duas décadas atrás — mas as imagens foram filmadas ali, na Zona Norte de São Paulo. “A escolha foi puramente técnica. Nossa estrutura e equipe ficam localizadas em São Paulo. Após uma pesquisa de locação (possíveis cenários), vimos que seria viável filmar aqui mesmo”, diz Andrea Barata Ribeiro, sócia da O2 Filmes, que prepara a série em conjunto com a HBO Max.
A decisão está longe de ser um caso isolado. Enquanto Cidade de Deus concluía as gravações na Vila Maria, outras produções, como Senna e De Volta aos 15, ambas da Netflix, e Beleza Fatal, a primeira novela da HBO Max, eram rodadas simultaneamente na cidade.
“Em 2023, tivemos uma média de 12,3 gravações por dia em São Paulo. Foram 720 produções até agora, o que supera as marcas de 2021 (620) e 2022 (710)”, afirma Carolinne Golfeto, coordenadora da São Paulo Film Commission, ou SP Film, braço da Spcine que acaba de lançar um catálogo com 500 espaços públicos disponíveis para virarem cenários — e vão desde hospitais até salas de controle da CET.
Criada em 2013, na gestão de Fernando Haddad (PT), a Spcine é uma empresa pública que busca facilitar a vida do setor audiovisual. O conceito existe nas principais cidades dos Estados Unidos, Austrália, Japão, França, Inglaterra e outros países de referência — a primeira iniciativa do tipo surgiu nos anos 1960 graças a uma parceria entre Alfred Hitchcock e a prefeitura de Nova York.
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A instituição paulistana recebe os pedidos para as gravações e centraliza o processo burocrático — consegue, por exemplo, licenças de órgãos como CET, SPtrans e subprefeituras. “Após a solicitação, temos um prazo para liberar as gravações: são três dias úteis para filmes publicitários e oito para outros conteúdos”, diz Carolinne. Antes, as próprias produtoras faziam a tarefa. “Houve filmagens canceladas na última hora por falta de autorizações”, ela afirma.
A lista de lugares disponíveis na cidade, lançada em novembro no formato digital (catalogo.filmesp.com), tem mais de 2 000 imagens dos possíveis cenários paulistanos, além de informações sobre os locais — diz, por exemplo, se há acesso para os caminhões com equipamentos da produção. “Antes, tínhamos uma lista menor, com menos dados e não disponível no site”, diz Carolinne.
“Tempo é dinheiro. Em cinema (dado o custo das diárias), mais ainda”, diz a cineasta Marina Person, que grava a terceira temporada de De Volta aos 15. “Ter as locações catalogadas no site ajuda nos processos de escolha”, ela acredita.
A nova lista incluiu lugares diversos como o Hospital Flávio Giannotti, no Ipiranga (fechado aos domingos, o que permite gravações), o Centro de Estudos Jurídicos (um edifício histórico no Pateo do Collegio), sacolões municipais e o Viveiro Manequinho Lopes, no Parque Ibirapuera.
A SP Film também promete assinar termos de cooperação com espaços concedidos à iniciativa privada nos últimos anos, como cemitérios, terminais de transporte público e o Mercadão — no caso do Ibirapuera, a empresa que passou a administrá-lo tem uma equipe própria para eventos do tipo.
As ruas e edifícios com arquitetura diversificada, que podem remeter a outras épocas e lugares, fazem de São Paulo uma opção versátil para as produtoras. A série João sem Deus, por exemplo, parceria entre o GloboPlay e o Canal Brasil, reproduziu aqui a cidade de Abadiânia, em Goiás. “Transformamos lugares da Vila Guilherme e de Santo André na Casa Dom Inácio, onde o suposto médium atuava”, diz Person.
Na série Anderson Spider Silva, do Paramount+, que conta a vida do lutador de MMA, a solução foi ainda mais ousada. “Uma rua da Liberdade ‘virou’ o Japão, com toda a direção de arte e figurinos específicos daquele país”, diz Renata Grynszpan, produtora da Pródigo Filmes, responsável pela atração.
Quando não “se disfarça” de outras cidades, São Paulo oferece aos telespectadores um visual rico e inconfundível. “Em As Five (série de comédia do Globoplay), nós filmamos em topos de prédios para colocar o skyline (o horizonte cheio de edifícios da cidade) em cena”, diz Caio Gullane, sócio-diretor da produtora Gullane Filmes — que, vale lembrar, fez uma comunidade do Jaguaré brilhar no sucesso Sintonia, da Netflix, e ocupou o Autódromo de Interlagos nas gravações de Carga Máxima, do mesmo streaming, com intermédio da Spcine.
Para atrair também as produções estrangeiras, a Spcine lançou em 2021 um programa de cash rebate, que devolve parte da despesa de filmagens que tenham potencial de trazer alta visibilidade à capital. O reembolso pode variar de 20% a 30% do total, desde que haja um gasto mínimo de 2 milhões de reais na cidade.
O projeto contemplou, por exemplo, as séries Sense8 e Conquest, produzida por Keanu Reeves. “Estamos em reuniões para viabilizar uma ficção científica que deverá ser filmada no Minhocão, uma coprodução Brasil-França”, adianta Carolinne.
“A SP Film aproximou as produtoras brasileiras do mercado internacional. Ajudou a posicionar São Paulo como um polo da indústria cinematográfica. O potencial é claro, e as medidas recentes consolidam a cidade como um destino competitivo”, afirma Andrea Barata, da O2 Filmes.
O balanço parece mesmo positivo. Desde 2016, a instituição autorizou mais de 6 200 gravações na capital, que vão de propagandas e novelas a pequenos projetos independentes — vale dizer, criações modestas que não interrompam o trânsito nem causem transtornos normalmente não precisam de autorização para as filmagens, como é o caso da maioria dos vídeos feitos por influenciadores digitais, outra febre na cidade atualmente.
Foram mais de 22 000 diárias de gravação no período. O orçamento total declarado pelas produtoras dessas atrações supera 3 bilhões de reais.
Além disso, a iniciativa paulistana evita que a turma do audiovisual tenha a enorme dor de cabeça de lidar com diferentes órgãos públicos. “Em DNA do Crime, primeira série de ação brasileira da Netflix, filmamos em 54 locações diferentes de São Paulo”, conta Manoel Rangel, cineasta e produtor que compõe a equipe do título.
“Imagine precisar lidar com todas as autorizações”, ele questiona. Seria mesmo um alvoroço, em uma cidade que atualmente registra de setenta a 100 produções por mês.
Antes da pandemia, o movimento era ainda maior. As produções registradas na Spcine variavam de 900 a 1 000 por ano, um patamar no qual a cidade só volta a encostar agora. Mas tem uma diferença: naqueles tempos, predominavam as gravações para a publicidade.
Enquanto parte dessas produções migrou para os influenciadores (que normalmente não entram na conta), as filmagens de conteúdos culturais, como filmes e séries, aumentaram a participação no total — principalmente as dos streamings. “De lá para cá, a demanda dessas marcas aproximadamente triplicou”, afirma Carolinne.
É um mercado que passa a dispôr de um cardápio de 500 cenários na cidade, mais uma ajuda à retomada pós-pandêmica. Pano de fundo de clássicos como O Beijo da Mulher Aranha (de 1985, com cenas filmadas no Minhocão e no Metrô Bresser e gênios como Sônia Braga, Raul Julia e José Lewgoy no elenco), São Paulo surfa a onda das séries e influencers sem perder o charme.
“É um desafio conjunto entre a Spcine e as produtoras, que só tende a deixar a capital cada vez mais atrativa”, diz Caio, da Gullane. “A atual diretora da Spcine (a roteirista, produtora, cineasta e diretora Viviane Ferreira) tem sensibilidade e compreensão do tema, o que é crucial”, completa Rangel.
Publicado em VEJA São Paulo de 17 de novembro de 2023, edição nº 2868