“Na teia da vida, nada que é vivo vive só”. Quando ouvi essa frase, pensei: isso veio de uma mulher.
Sim, Margaret Wheatley sintetizou em poucas palavras a importância da conexão e certamente o fez através da grande força que faz morada em sua alma, a força do feminino.
+Os caminhos do som que levam ao coração
Sou mulher, mãe, esposa, filha, irmã, amiga, conselheira, defensora pública, agente da paz. faço parte daquela espécie muito estudada: o ser multitarefas. Conhece?
Uma vez me perguntaram de onde tiro energia para viver tantos papéis ao mesmo tempo, e a primeira coisa que veio a minha cabeça foi: do amor. A conexão traz à tona nossa potência, e como se conectar com o outro senão firmados no amor?
Um dos livros mais antigos, que aprecio muito, lembra que o amor não se alegra com a injustiça, mas regozija-se com a verdade. Eu trabalho no sistema de justiça. Às vezes me pergunto o que é justiça. Passo horas e horas refletindo sobre isso. No meu dia a dia recebo — como uma foz onde deságuam muitos rios — inúmeros conflitos, e fico estarrecida ao perceber que não só os conflitos trazem violências em seu contexto, mas o próprio sistema criado para resolvê-los também traz violências enraizadas.
Perplexa, constato que faço parte disso. de alguma forma, eu retroalimento a violência. Aliás, não só eu, mas TODOS nós participamos do sistema.
A partir dessas reflexões decidi sair da inércia, do pensamento de que sempre foi assim, e fazer a mudança que eu queria ver ao meu redor. foi preciso mergulhar nas profundezas do meu ser, entender quem eu era e acolher o incômodo interno que pulsava.
Nessa caminhada, abracei a Justiça Restaurativa e fiz a jornada do coração à mente. Confesso que o abraço foi um pouco sem jeito, desconfortável, já que esse movimento de transformação social é um convite à mudança de paradigmas.
Ao longo do caminho, construí alguns conceitos, desconstruí outros, abandonei algumas crenças limitantes, olhei para as violências estruturais e culturais que vivencio de forma tão normal. Quase paralisei. Mas consegui girar a primeira chave quando percebi que somos interdependentes, quando entendi que, quando um semelhante meu é afetado, eu também serei, e me senti pertencendo.
A segunda chave consegui girar quando entendi que sou corresponsável, e que tenho muito a fazer. A partir daí passei a estudar conflitos e percebi que o conflito não é ruim. É, na verdade, uma oportunidade. Oportunidade de se aperfeiçoar, oportunidade de crescer, oportunidade de vivenciar as vulnerabilidades de cada um e assim se conectar verdadeiramente com o outro.
Quando se vive esse movimento restaurativo, não se pensa em solucionar conflitos com respostas prontas, mas transformar conflitos. Essa é a beleza. Nessa caminhada costumamos dizer: vamos devagar, pois temos pressa. Sim, temos pressa! Mas, se fizermos mais do mesmo, sem zelo e cuidado, tudo continuará igual.
Como mudar? Acredite, se você mudar o seu entorno… Ah! Que grande diferença fará.
Como defensora pública, iniciei minha passada de formiguinha pensando de forma estratégica em como realizar política pública dando passos tão pequenos e cuidadosos. Por onde começar? E em meus mergulhos em minha essência, fez total sentido iniciar minha caminhada no coração da comunidade: as escolas.
Eu realmente acredito que é possível educar para paz, para convivência harmoniosa através de relacionamentos democráticos, firmados na amorosidade, no respeito e na esperança, possibilitando convívio construtivo entre todos os indivíduos da sociedade.
Não há melhor lugar do que iniciar isso em âmbito escolar. Não é à toa que o conselho Nacional de Justiça declarou 2023 como o Ano da Justiça Restaurativa nas escolas.
O caminho da transformação social é o da cultura de paz. Abrir a janela da alma para o movimento de transformação que a Justiça Restaurativa convida possibilita assumirmos nosso papel como coconstrutores da paz. Todos nós podemos fazer parte dessa jornada. Eu não tenho respostas prontas, muito menos uma varinha mágica, mas sei que o caminho da paz é aquele que verdadeiramente conecta pessoas em amor, sem julgamentos.
Será que essa trajetória nos levará a tal felicidade? Não sei dizer, mas com certeza chegaremos muito perto.
Samanta Souza Ramos (@culturadepaznacomunidade) é defensora pública do estado de São Paulo, membro do órgão gestor do Núcleo de Justiça Restaurativa pela cultura de Paz de Santo Amaro, coordenadora regional da escola da defensoria, expositora das Oficinas das famílias e realizadora de projetos de justiça restaurativa nas escolas.
A curadoria dos autores convidados para esta seção é feita por Helena Galante. Para sugerir um tema ou autor, escreva para hgalante@abril.com.br
Publicado em VEJA São Paulo de 26 de abril de 2023, edição nº 2838