Como um homem preto que nasceu e cresceu na periferia de Guarulhos, em São Paulo, desde muito cedo tentei entender o conceito de o que é “ser feliz”. O que isso significa? Onde está a tal felicidade? Na periferia, tentava sobreviver às estatísticas que insistem em perseguir o povo preto e intrinsecamente conectava felicidade ao sucesso, mas tinha um problema enorme: as minhas referências de sucesso e consequentemente de felicidade eram todas brancas. Quando ligava a televisão, assistia a um filme, ou escutava uma entrevista de pessoas felizes e de sucesso, todas eram brancas, então comecei a me perguntar: como posso ser feliz se não faço parte desse recorte? Como posso ter sucesso se não sou branco? Então um homem negro não pode ser feliz?
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Esse dilema me acompanhou por muitos anos e, visando “resolvê-lo”, desesperadamente comecei a tentar me encaixar no que me foi apresentado como sucesso e felicidade. Em outras palavras, eu tentei ser uma pessoa branca, imitando costumes, copiando gírias e reproduzindo vestimentas e marcas. Me lembro de ter quase abdicado da minha paixão pelo samba e comecei a ouvir estilos que eu não gostava, mas que me faziam ser mais branco na minha cabeça. Por muitos anos tive vergonha do meu cabelo, já tentei alisar e, como não consegui, decidi ter o cabelo sempre na máquina zero.
Como ser feliz se não poderia nem ser eu? Como ser feliz se não me reconhecia como homem preto, o que de fato eu era e sou? Essa tentativa de embranquecimento como sinônimo de felicidade me acompanhou por muitos anos, mas eu não era feliz, sentia que não me encaixava, que não fazia parte e não me sentia realizado. Foi quando aos 28 anos decidi procurar ajuda e comecei a fazer terapia. Procurei um psicólogo, pois queria entender o porquê de a tal felicidade não estar batendo na minha porta, o porquê de eu não ser feliz.
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No fim, o processo terapêutico me trouxe muitas respostas que nem imaginava estar procurando. Foi e ainda é um gigantesco processo de autoconhecimento. Comecei um processo de certa forma doloroso de me reconhecer como um homem preto em uma sociedade estruturalmente racista. Aprendi que, acima de tudo, independente do sucesso, sempre serei negro em primeiro lugar. Esse entendimento foi vital para meu autoconhecimento. Voltei a me identificar com a minha cultura, a ouvir samba e tocar nas rodas, deixei meu cabelo crescer e perdi a vergonha de dizer quem eu sou.
Passado esse período de autoconhecimento da minha negritude, as minhas conquistas ficaram mais significativas, me formei em uma das universidades mais privilegiadas do mundo, a Universidade Harvard, e trabalho em uma das empresas mais queridas do Brasil, a Netflix. Todavia, não foram somente essas conquistas que deixaram a tal felicidade mais tangível para mim, e sim o fato de me reconhecer como homem preto, o fato de poder estar próximo das minhas origens e cultura sem sentir vergonha por isso e poder dizer com muito orgulho: sim, eu sou um homem preto.
A curadoria dos autores convidados para esta seção é feita por Helena Galante. Para sugerir um tema ou autor, escreva para hgalante@abril.com.br
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Publicado em VEJA São Paulo de 25 de janeiro de 2023, edição nº 2825