Todos nós sabemos que é preciso uma bela dose de prazer para ser feliz. O problema é quando prazer e felicidade entram em conflito e a gente fica sem entender o que fazer.
Como seria mais fácil se pudéssemos ouvir as vozes da felicidade e do prazer, cada qual numa orelha. Desliga o relógio e dorme mais meia hora, sussurraria o hemisfério direito do cérebro. As contas estão vencendo; sai dessa cama e vai à luta, responderia a outra metade. Mas não; na comunicação consigo mesmo, o sistema é estéreo e só existe um locutor.
Dizem que se fôssemos monges tibetanos seria outra história. Não veríamos felicidade e prazer como estados distintos, pois só nos importaríamos em estar no aqui e no agora, livres de toda ilusão. Fico pensando como funciona isso sob a mira da metralhadora e chego a sentir saudade do meu relativismo.
Se eu tivesse alguma coisa para ensinar sobre a felicidade e o prazer, pararia agora para aprender comigo mesmo. Não me entenda mal. A única coisa que posso dizer é que vale a pena apostar que existem — e que não é fácil resistir aos exemplos práticos de quem quer provar o contrário
Por outro lado, aprendi na teoria e na marra algumas coisas sobre decisões que podem se aplicar a esta discussão. E é isso que eu gostaria de compartilhar.
Não sei se você reparou, mas toda decisão importante tem consequências de longo prazo. Na eterna disputa entre prazer e promessa, a tomada de decisão é a sintonia interna que define essas diferenças muito bem. Quando a gente se põe nela, tudo aquilo que é mais imediato deixa de ser tão relevante.
Isso acontece porque as decisões que importam são feitas de imaginação. Elas não são feitas de avaliações racionais ou mesmo de heurísticas; elas são feitas do mesmo jeito que você as conheceu aos 4 anos. Faz de conta que eu decidi aceitar aquela proposta. Primeiro dia, sentei ao lado dos colegas e comecei a trabalhar. Não, espera, faz de conta que vamos começar em home office. Mas e depois? Faz de conta que depois seguirei lá por muitos anos. E faz de conta.
Uma coisa que reparei no tempo em que só vivia de estudar a natureza desse faz de conta é que ele pega emprestado algo precioso do domínio memórias. Sabe a ressonância magnética? Ela mostra que os circuitos do cérebro que você usa para imaginar essas possibilidades são exatamente aqueles que servem para trazer de volta suas mais preciosas memórias.
Acontece que memórias preciosas não são só um filminho na cabeça. Elas são sentidas de verdade. Essa capacidade de sentir o imaginado é o verdadeiro recurso emprestado.
A maior razão para a procrastinação é a dificuldade de soltar um pouco o freio de mão de tudo o que está acontecendo aqui e agora e emprestar a capacidade de sentir ao seu eu futuro, essa pessoa que conta como as coisas estão rolando lá no mundo das hipóteses. É como um monge budista, mas com o sinal trocado.
Quando me convenci de que é assim que as tomadas de decisões funcionam, percebi que tinha me habituado a representar a vida de um jeito que não ajudava. Veja se lhe é familiar: a vida é como um novelo que vai se desenrolando. Você faz uma coisa, depois outra, então uma terceira. É nisso que acreditei por anos.
Até que um dia me toquei de que essa visão linear nega o que as grandes escolhas da vida nos mostram. A tomada de decisão deve ser vista como uma espécie de filosofia não linear, importante para viver o prazer e tentar ser feliz. Eu a chamo de filosofia dos botões de almofada. Funciona assim: as coisas mais importantes são como aqueles botões estampados nas almofadas da minha avó. Eles parecem enfeites, mas na verdade amarram todo o tecido.
Fazendo de conta que você é uma formiga, dá para atravessar aquela maiorzona (a dos flocos de espuma duros) numa boa. Esse é o tal modelo da vida que vai se desenrolando. Por outro lado, você pode imaginar que os botões são minicatapultas e que o tempo que a gente tem para ficar zanzando permite saltar quase entre elas. Aí, nesse caso, dá até para chegar a outras almofadas. Ou mesmo à lua ou ao chão.
Há quem diga que o chão das almofadas está mais perto que a lua. Não sei, tem um risco. O que me parece claro é que para corrê-lo é preciso pegar o caminho das minicatapultas. E isso só é possível ao se entregar de corpo e alma às grandes decisões.
Álvaro Machado Dias é um neurocientista especializado em tomadas de decisão que começou a pensar mais seriamente sobre felicidade quando nasceu a Liz. É professor livre-docente da Unifesp, sócio do Instituto Locomotiva de Pesquisa e da WeMind.
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Publicado em VEJA São Paulo de 18 de novembro de 2020, edição nº 2713
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