Aquele que eu salvei um beija-flor.
Você não vai acreditar, mas quase atropelei um beija-flor. Não, não foi agora. Já faz um tempo, mas acho que alguns acontecimentos definem a vida de uma pessoa.
Foi assim: entrei no estacionamento ao lado da escola e vi o que parecia ser um papel queimado rolando no ar, bem baixo. Caiu perto da minha porta, ao lado do pneu. Pensei que era um picomã. Picomã era aquela fumaça em pedaços que voava quando queimavam o canavial em Santa Rita, lembra?
Desci do carro e percebi que era um passarinho. Vi a asa estendida, mas não dava para ver a cabecinha. Abaixei para pegar, com o manobrista aflito atrás de mim querendo saber se eu sairia logo ou se ele poderia colocar o carro no fundo.
Naquele momento, não me importava. Eu tinha nas mãos um beija-flor. Achei que ele havia morrido, mas não. Estava com os olhos fechados e respirava bem devagar. Virei para o manobrista e disse:
— É um beija-flor!
Ele me respondeu:
— Vai lavar o carro hoje?
Percebi que não era um dia que falaríamos a mesma língua.
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A rua da escola na hora do almoço está sempre lotada. São muitos pais, crianças e professores descendo ou subindo, entrando ou saindo. Passei pelas pessoas meio alheia, cumprimentando rapidamente, querendo salvar o beija-flor. Tinha nas mãos um segredo e não queria me separar dele. Talvez as crianças quisessem pegá-lo, talvez algum inspetor pudesse ficar com ele para eu dar aula. Mas aquele encontro era nosso. Não é todo dia que se pega um beija-flor. Eu não quis dividi-lo com ninguém.
Levei para a sala — eu ainda tinha um tempo antes de começar a aula. Enchi uma tampa de plástico com água e coloquei perto do bico. Um fio de língua apareceu para fora. Esvaziei uma caixa de giz e coloquei o beija-flor lá dentro. Pensei em encher com as folhas da planta do vaso da porta, mas me achei incapaz em ter a sabedoria infantil de fazer ninhos improvisados em caixas de sapato.
Meu beija-flor não gostou da caixa, porque logo tombou com a cabeça para baixo. Peguei de novo nas mãos, com medo de ele ter morrido. Respirava ainda mais devagar, com os olhos fechados.
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Estava combinado: um beija-flor moraria na minha mão para o resto da vida.
Fiquei ali parada, segurando a insustentável leveza, precisando olhar firme para ter a certeza de que eu ainda carregava alguma coisa, porque, de tão pequeno e frágil, meu beija-flor parecia não existir.
As crianças já começavam a subir. Escolhi um lugar no vaso para escondê-lo e então ele voou. Assim, sem avisar.
Sabia que o beija-flor tem um coração enorme? Sabia que o colorido das asas é por causa da refração da luz nas penas? Sabia que os beija-flores são os maiores polinizadores das flores do Parque do Itatiaia? Sabia que o beija flor cai em um sono profundo e quase hiberna? Sabia que ele protege com fúria o ninho? E, olha só, sabia que o beija-flor canta, mas o som é tão agudo e rápido que o ouvido humano não consegue escutar?
Falando nisso, ontem o Fabio fez uma seleção de músicas antigas para você escutar. Fiquei curiosa em saber qual era a playlist, mas achei que seria um momento só de vocês.
Quarta-feira completa dez anos do seu sono, Ita. Talvez a realidade seja mais dura e triste do que a gente queira ver: uma pessoa em estado vegetativo persistente já há uma década. Essa pessoa, nosso irmão.
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Milan Kundera escreveu que “quanto mais pesado o fardo, mais próxima da terra está a nossa vida e mais ela é real e verdadeira. Por outro lado, a ausência total de peso faz com que o ser humano se torne mais leve do que o ar e que seus movimentos sejam tão livres quanto insignificantes”. Então, o que escolher? O peso ou a leveza?
Escolho a leveza do peso. Escolho significados.
Você é meu irmão semirreal com um coração enorme e agora tão frágil que tenho medo de não existir. Você dorme um sono profundo, quase hiberna.
Talvez fale, mas não tenho um ouvido treinado para escutar. Você tem luz e, embora sutilmente, espalha sementes por aí.
Aprendi com você e por você a defender com fúria nosso ninho. E esperar. Porque não é a todo momento que se tem um beija-flor nas mãos.
A curadoria dos autores convidados para esta seção é feita por Helena Galante. Para sugerir um tema ou autor, escreva para hgalante@abril.com.br
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Publicado em VEJA São Paulo de 13 de abril de 2022, edição nº 2784