“Clã” não é uma palavra tão comum no vocabulário do dia a dia. Remete à nossa origem, a uma ancestralidade compartilhada. Na minha imaginação, um grupo de pessoas com muita intimidade umas com as outras, sentadas talvez em volta de uma fogueira ou nos pés de uma cachoeira, conversando sobre os desafios e as coisas lindas que sempre surgem no caminho.
Abro os olhos, porém, e estou aqui em São Paulo. Não tão perto de todos os amigos, lutando para dar conta de responder às múltiplas mensagens no WhatsApp (e perdendo a batalha, claro), em alguns momentos lembrando de pôr água regularmente nas plantas, em outros celebrando apenas o fato de ter tomado banho e lavado o cabelo (mulheres vão me entender, hoje foi um dia “não”).
+Nasci para sofrer ou para ser feliz?
Quando foi que ficou tudo tão complexo? Meu palpite é que começou com um muro. Uma parede que erguemos para nos separar de quem estava perto, uma barreira que parecia que era para nos proteger, mas no final só está fazendo todo mundo se sentir sozinho – e infeliz. Percebo muitos limites mentais também, cercadinhos que construímos com pensamentos e hábitos rodando em looping, nem sempre jogando a nosso favor.
Para sair desse grande déjà-vu e abandonar o excesso, quero começar quebrando alguma regra de padrão que estabeleceu que devemos silenciar sobre os nossos desconfortos. Eu sei que sou forte, mas e se na mesma jornada eu também puder contar que sou sensível? E se der para falar em voz alta que uma mãozinha é bem-vinda e também se abrir para aceitar receber a ajuda que nem sempre vem de onde se espera?
Tenho vislumbrado na experiência do feminino um outro jeito de viver. É a amiga que me confidencia “estou confusa” pela manhã, para terminar a noite celebrando o seu próximo grande passo profissional. Outra que treinou e treinou até conseguir melhorar na corrida. Fiquei sabendo pelas redes sociais, aquelas mesmo que tanto nos consomem, num appreciation post.
Descobri que essa “modalidade” de conteúdo é um jeito de apreciar sua própria jornada, lembrando que nosso melhor pode variar de um dia para o outro, mas a dedicação traz frutos. Foi ainda na constância de uma amizade de mais de vinte anos que encontrei a síntese e a resolução da emoção inquieta que nos sufoca: “Você estava na minha cabeça esses dias mas achei que não valia a pena te acionar, porque já estava com muito”, ela escreveu. Meu coração esquentou com a mensagem, o dela também. “Ledo engano. É assim que a gente regenera”, concluiu, com sabedoria.
O poder desses encontros não está restrito às mulheres, mas alguma abertura ao sentido feminino é necessária para desfazer os muros, tijolo por tijolo. Felizmente, essa é uma habilidade presente em todos, sem exceção. Quando encontramos a gentileza para abraçarmos quem somos, ampliamos o que o mundo pode ser. Surge a possibilidade de contemplar a dança frenética da transformação com olhos calmos.
Aqui nesse ponto, a essência do clã fica evidente: não é sobre um passado bucólico, é sobre as relações. Elas que nos fortalecem. Onde descansamos e nos sentimos em casa. Uma casa clã, arrebatadora e feliz, com espaço para a vida ser como é. Mesmo que hoje tenha sido um dia “não”.
Publicado em VEJA São Paulo de 08 de março de 2023, edição nº 2831
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