No princípio era o caos, depois, o verbo.
Verbo, palavra, nome de coisas e de pensamentos, o que torna real um conceito e cria todas as formas.
Além de linda premissa, a mais clássica das cosmogonias ocidentais, a frase chama a atenção para o anseio primordial de explicar o mistério do mundo, o que pensamos individual e coletivamente e o que nos une, afinal, desde que a humanidade é humanidade, o subjetivo anda colado à concretude da vida.
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Talvez memória inconsciente por sermos “poeira de estrelas”, talvez porque a realidade nunca tenha bastado, a ideia da existência de uma esfera maior, de pertencer a um todo, de uma sabedoria que organiza tudo motivou o ser humano a se desenvolver fora dos instintos.
Esse é o conhecimento que os oráculos representam. A palavra oráculo está ligada à Grécia (lembra do Oráculo de Delfos, em cujo portal estava escrito “Conhece-te a ti mesmo”?) e tornou oficial um costume para lá de antigo: buscar, por meio de conteúdos místicos, respostas na sabedoria que permeia o Universo.
Pessoalmente sempre fui afeita a oráculos. Comecei pela astrologia, mas tenho nas runas e, principalmente, no tarô mitológico a minha predileção.
Experimento nas dinâmicas um conforto íntimo, algo como a antítese da máxima popular “se conselho fosse bom, era vendido e não dado”, uma sinalização de caminho, um alívio e um certo compartilhar de responsabilidade na tomada de decisões, um quê de humildade na escuta por seguir sugestão ainda não cogitada, mas que faz todo o sentido.
Porém, existe uma sombra no hábito de consultar um oráculo, exatamente esse alívio que, levado às últimas consequências, pode acenar para um eximir-se de responsabilidade, deixar que decidam por nós, o que reafirma o empurra-empurra da eterna criança que não toma para si as rédeas de sua vida e se vê confortavelmente no papel de vítima do destino. Algo que pode virar vício e até fanatismo.
Tenho amigos que viajam para os mais longínquos lugares para passar o aniversário por ser mais auspicioso, astrologicamente falando; outros que não iniciam relacionamentos sem consultar cartomantes; e os mais bandeirosos, que mudam grafias de nomes em razão da numerologia. Sem contar o padrão chato que nos faz seletivos na hora de ouvir uma resposta: se eu gosto, está correto, senão, o oráculo nada sabe.
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Em minhas consultas, várias vezes virei cartas até tirar a que acenava para a direção que eu queria, como que trapaceando o universo, em vez de ouvi-lo.
Uma das coisas mais difíceis da vida é definir o que se deseja, para em seguida fazer o pedido e então pedir aquela forcinha do cosmo para sua concretização.
O mais comum é saber o que não se quer, tampouco se contentar com o que vem por aí.
Já escrevi três livros e em ambos tive o cuidado de atentar para o fato de que a resposta é sempre correta, a pergunta é que pode não estar sendo feita de forma clara e objetiva.
Não é justo deixar tudo nas costas do universo, afinal, ele não pode entregar o que não se sabe pedir.
Nomear desejos é tarefa primeira, é ordenar o caos e ir para o verbo ou talvez usar o verbo para sair do caos e depois, silenciar, para refletir e assimilar.
Perguntar é fundamental, mas igualmente importante é ouvir o oráculo. Nessa hora, quem conhece a si mesmo leva vantagem.
A curadoria dos autores convidados para esta seção é feita por Helena Galante. Para sugerir um tema ou autor, escreva para hgalante@abril.com.br
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Publicado em VEJA São Paulo de 2 de novembro de 2022, edição nº 2813