Ela batia palmas e sorria quando encontrava alguém que amava. Encostava os pés em seu marido quando sentia medo. Sentia o corpo esquentar e esfriar ao mesmo tempo sempre que deparava com obras de Georgia O’Keeffe. Ficava aliviada com o pouso do avião. Comovia-se ao ver lotes de vacina chegando na pandemia. Impressionava-se com as plantas nascidas no deserto. Enternecia-se com as altas hospitalares. Via figuras no céu. Sentia. Permitia. Descontrolava-se. Desconstruía e construía histórias e lembranças que a mantinham viva.
Em cada experiência, novas vivências, todas regadas a intuição. A tal felicidade vinha para encorajar a viver. Ajudava no desafio de fazer crescer a empatia e caminhava em direção a um ato de coragem. Acontecia junto a alguém ou sozinha. Urgia com a partilha do milagre da multiplicidade, nos momentos mais comuns e inesperados.
Lia sobre a felicidade, ouvia que ser feliz é escolher o que é mais próprio para si. Que a tal felicidade precisava de licença para se fazer presente. Que era possível encontrá-la na poesia, desde que fossem desobstruídas as portas das percepções. Em As Meninas, de Lygia Fagundes Telles, descobriu que a autora ouvia 290 vezes a mesma música, lembrava-se de poesias, dava piruetas, sonhava, inventava e abria todos os portões e, quando percebia, a alegria já havia se instalado nela. Assim compreendia que, de caráter subjetivo, a felicidade é encontrada por cada um a seu modo. Pensava a felicidade como um sentimento contagiante, capaz de estimular a continuidade de qualquer coisa. Compreendia-a como a mais pura transmissão da verdade pessoal, como expressão viva e perene que dá sentido ao viver. Poderia manter-se inoculada e ser mais tarde liberta por experiências novas. Seria a felicidade a semente esperando ser regada para crescer?
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Em meio a tormentos, dúvidas e gratificações do cotidiano, a felicidade se apresenta. Penso que o mais significativo é vivê-la. Porventura lembrava-se de estar feliz, contudo a causa que a motivara, dela não se recordava. A felicidade é, por essência, uma potência de emoções. Estimulada pela beleza (capturada por quem a vê), a experiência complexa de sentir-se feliz é um dos meios que colocam a mente humana em movimento. Estaria ela presente à espreita de um encontro conosco?
Esse é um dos temas mais caros e ousados relacionados à existência humana, o da constante busca pela impactante e visceral felicidade que, muitas vezes, se origina das entranhas do não sabido.
O desejo de ser feliz vem sendo veementemente perseguido com forças dionisíacas ao longo da história. Criam-se novos sistemas para alcançar a felicidade, e ela, altiva e autônoma, segue em seu funcionamento de ordem emocional complexo, porém de encaixe perfeito e simples (quando se dá). Não que ela não se afeiçoe aos investimentos das grandes conquistas humanas, mas sua essência é simples. Ela é própria, inusitada e subjetiva. cada pessoa é feliz a sua maneira e precisa ser aceita e considerada por quem a sente. Pode ser que sua cara conquista seja marcada por sua característica instável e seu espírito inquieto. Experimentar a felicidade é como sentar em uma cadeira que balança. Movimenta-se a partir de seu impulso, tem tempo de espera e de cura.
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Viver o deslumbramento do amanhecer e do entardecer parece ajudar. Ambos são complementares e acontecem diariamente. Apresentam características que se mantêm e outras que se diferenciam com o passar das estações do ano ou dos lugares. Os dois nos estão sempre disponíveis e, aos que desejam contemplá-los, é preciso saber que lá devem estar no horário exato. Duram apenas o tempo necessário, sempre com o mesmo efeito de encantamento. Será esse um bom modelo para falar de felicidade?
Rejane Maria Ganzarolli Lopes é psicóloga clínica e psicanalista, membro da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo.
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Publicado em VEJA São Paulo de 10 de novembro de 2021, edição nº 2763