Tempos atrás, cinco famílias de gatos — que, como clãs das séries de fantasia, não se misturavam entre elas — passaram a viver na Oficina Central da Sabesp, perto da Represa de Guarapiranga, um terreno de 75 500 metros quadrados. Desde 2019, a empresa procurava uma solução para os bichanos, que incomodavam a rotina local. Além de trazerem riscos ao circular entre as máquinas e carros dos funcionários, uma minoria é indócil à aproximação de pessoas. Em junho deste ano, a Sabesp resolveu contratar, por 25 000 reais, uma dedetizadora chamada Loremi, que presta serviço de captura de felinos, para dar uma solução ao caso.
Ao saber que a tarefa seria executada pela Loremi, uma “controladora de pragas” do bairro Jardim Maracanã, na Zona Norte, ativistas de proteção animal decidiram fazer barulho junto à diretoria da Sabesp. Em 2015, a Loremi se envolvera em polêmicas ligadas à captura de gatos em terrenos do Carrefour e da Mercedes-Benz no estado. As ações foram apontadas como inadequadas por ambientalistas. “A Loremi defende que os gatos são fauna sinantrópica nociva, ou seja, pragas urbanas. A empresa não tinha os cuidados necessários na captura e havia dúvidas até sobre o destino dos animais”, afirma Tatiana Sales, da ONG Confraria dos Miados e Latidos, que passou a pressionar a Sabesp no caso da Guarapiranga. Outras ONGs, como a Amanimal e a Adote um Gatinho, alegam que teriam sido usadas como fachada pela dedetizadora na época. “Eles divulgavam que os animais iam para nossa sede, o que não era verdade”, diz Doroti Bottoni, da Amanimal.
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A contagem inicial feita pela Confraria constatou que havia pelo menos 55 gatos no terreno da Sabesp. “Podem ser até sessenta. Mas eles são parecidos e pode acontecer de contarmos o mesmo duas vezes”, diz Adriana Tschernev, fundadora da ONG. Em duas missões separadas, no mês de julho, os voluntários conseguiram resgatar 42 gatos — enquanto adiavam a chegada da Loremi, por meio de conversas com a concessionária. No momento, dezenove encontram-se na sede da Confraria, na Vila Prudente (foto de destaque). Três já foram adotados. Outros vinte seguiram para ONGs parceiras, como a Adote um Gatinho. Restam aproximadamente treze no terreno, que a turma ainda não capturou. “Do total, cerca de quinze não poderão ser adotados, por serem arredios”, diz Adriana. Nesses casos, a literatura veterinária determina que sejam devolvidos ao lugar onde viviam, após serem examinados e castrados. Dessa forma, os próprios animais evitam que novos gatos invadam a área.
No contrato com a Sabesp, a Loremi se dispunha a capturar, castrar e encaminhar para a adoção os felinos. As ONGs afirmam que a empresa não teria equipamentos apropriados para manter os animais, nem capacidade de promover as adoções — justamente porque, após a polêmica de 2015, a dedetizadora se tornou uma desafeta das ONGs, que normalmente são a turma capaz de encontrar novos donos para os bichos. “Recolher é a parte fácil. Difícil é conseguir quem adote”, diz Adriana. No site, a Loremi informa: “não trabalharemos mais com ONGs e não pretendemos fazer mais nenhum tipo de parceria com as mesmas”. Uma funcionária reconhece que “a ausência dessas redes dificulta as adoções”.
“Classificar os gatos como fauna nociva é um retrocesso e reforça preconceitos. Manejá-los como tal é crime de maus-tratos”, diz o Fórum Nacional de Proteção Animal
A Loremi também faz manejo de pombos e limpeza de fossas sanitárias. No negócio de captura de gatos, iniciado em 2015, aparentemente não tem concorrentes: segundo as ONGs e até onde consta nas buscas on-line, não há outros prestadores privados do serviço na capital — com exceção, bem, da Sanemix, que pertence ao mesmo dono da Loremi, o químico Maurício Alencar. É ele quem assina a responsabilidade técnica do manejo dos gatos, não um biólogo. “Normalmente o recolhimento de felinos abandonados é feito por ONGs, mas elas não podem emitir notas fiscais, recebem por doações — e, para empresas públicas (como a Sabesp), isso é um empecilho”, explica Adriana, da Confraria.
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A permissão para capturar gatos comercialmente é controversa. A Loremi tem um aval estadual para o controle de “pragas urbanas”. O Ibama define que gatos abandonados são passíveis de controle, mas que empresas interessadas devem ter autorização dos órgãos ambientais estaduais. A Secretaria da Saúde e o Centro de Zoonoses, porém, informam que não consideram gatos como pragas urbanas. “A Vigilância Sanitária analisará o caso e tomará as providências cabíveis”, diz a pasta. Para Vânia Plaza Nunes, diretora do Fórum Nacional de Proteção e Defesa Animal, incluir os gatos nessa categoria é um equívoco. “Classificá-los como fauna sinantrópica nociva é um retrocesso e reforça preconceitos. Manejá-los como tal configura crime de maus-tratos”, diz. Em ação ligada aos casos de 2015, o advogado da empresa diz que há preconceito das ONGs, por serem uma dedetizadora.
Vejinha quis conferir se a Loremi tinha mesmo um gatil para guardar os felinos que captura. No primeiro contato, a empresa disse que contava com a estrutura em sua sede. Ao tentar visitá-la, a reportagem foi informada de que, na verdade, o gatil não ficava ali. Dias depois, outra funcionária afirmou que o endereço possuía, sim, o gatil. A visita revelou um ambiente menos aconchegante que a foto exibida no site da dedetizadora (veja abaixo). Sem gatos, havia apenas uma gaiola encostada em um canto.
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Ex-funcionários da dedetizadora, sob anonimato, corroboram algumas das acusações das ONGs. “Não havia gatil na sede da empresa pelo menos até o ano passado. Já aconteceu de gatos passarem dias em gaiolas, sem os cuidados adequados”, diz uma dessas fontes. “Houve situações em que a empresa só recolheu os animais e os abandonou em outro local, sem a castração”, afirma. A Loremi diz que sempre devolve os gatos indóceis ao próprio terreno. Também alega que organiza doações usando as redes sociais dos funcionários (ao todo, são cerca de quarenta). O proprietário não concedeu entrevista.
Após as pressões, a Sabesp achou uma solução para os gatos da Guarapiranga. Os ferozes vão voltar ao terreno onde viviam. “Serão castrados e acompanhados”, diz Adriana. O contrato com a Loremi está suspenso. A Sabesp promete criar um ponto de alimentação para os bichanos. Interessados em adoção: falar com as ONGs.
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Publicado em VEJA São Paulo de 25 de agosto de 2021, edição nº 2752