“Nunca pensei que íamos ter um laço tão forte”, diz chorando Caroline Pivetta, 36 anos, à Diógenes Muniz, 35, documentarista que dirigiu, junto com Douglas Lambert, um curta-metragem de quase dezoito minutos sobre ela, a ser exibido entre os dias 22 e 26 no festival Mammoth Lakes Film, na Califórnia, nos Estados Unidos. O filme em questão leva o sobrenome de Caroline, ou seja, se chama Pivetta.
“O Diógenes foi me enrolando com esse título. Não gosto, porque sempre falavam errado, pi-vé-ta, em vez de pi-vê-ta, como é o certo. E como sou baixinha, também achavam que combino com esse ‘apelido’ ”, explica a pichadora, que nasceu em Santa Maria (RS) e foi presa em 2008, ao deixar sua marca ilegalmente no prédio da Bienal de São Paulo, durante a 28ª edição.
Ao todo, o grupo no qual estava tinha cerca de quarenta pichadores. Muniz teve o primeiro contato com Caroline quando ela estava detida por causa do episódio. Foram quase dois meses de cárcere na Penitenciária Feminina, em Santana. “Em 2018, a visitei na cidade para onde ela se mudou depois de sair de São Paulo. Era Alvorada, interior no Rio Grande do Sul. Filmamos o encontro, a caçula dela e depois pegamos, todos juntos, um avião de volta, para visitar a 33ª edição da Bienal, que acontecia naquele mesmo ano. Não planejamos nada do que ela ia fazer. Podia ser uma visita tranquila, mas também ela podia querer fazer outra intervenção por lá”, recorda o cineasta, que, neste ano, quando abre a 34ª edição da mostra, no sábado (4), não deve contar com a companhia de Caroline na visita.
Um dos pontos altos de Pivetta, o documentário, é Isis, a filha de 6 anos da pichadora gaúcha. A garota aparece andando de bicicleta, pintando papéis e também fazendo perguntas capciosas. “Ela adora ver jornal, é muito questionadora. Outro dia, procurou meu nome na internet e veio me dizer que o Google já me conhece”, conta a mãe. Isis não foge da descrição e durante a entrevista, por vídeo, aparece e se apresenta.
Quando pergunto como está a produção de obras de arte, ela fala desenvolta: “Por agora, não estou fazendo muito, está mais ou menos”. Mais do que uma garotinha falante, ela também é motivo de reflexão para a mãe. “Hoje em dia, não sei se faria uma intervenção como fiz daquela vez. Qualquer coisa que faço por um bem coletivo, seja legal ou ilegal, é válida. Porém é complicado envolver uma criança”, pondera Caroline, que foi condenada no processo da intervenção na mostra e, durante o período em que foi julgado um recurso pedindo a revisão da decisão, o caso prescreveu.
Considerações também são feitas por Ivo Mesquita, curador da exposição e que, à época, reprovou o método utilizado. “No final, acho que foi uma espécie de performance. Todos nós sabíamos que iria ter uma invasão. Os pichadores foram auxiliados por um jornalista, que colocou os sprays dentro do prédio”, diz.
Mesquita também recontextualiza o ocorrido. “Ela deu azar, porque pegou um delegado que fazia campanha contra pichação. Também foi usada para atacar a fundação, que passava por uma crise institucional, e a Bienal, que já havia gerado antipatia por ter um número reduzido de artistas e ambientes vazios. Além disso, o prédio era tombado e de propriedade da prefeitura, ampliando o alcance da disputa”, acredita Mesquita. “Os pichadores também foram criticados. Diz-se que faz parte da ética deles não pintar em cima dos trabalhos dos outros, e não foi isso que fizeram lá.”
Djan Ivson, mais conhecido como Cripta, que participou com Caroline da ação na Bienal, também tem sua análise. “Acho que a gente amadureceu muito. Ser fiel ao nosso discurso teve um preço alto. Nem acredito que o Moacir dos Anjos, curador da outra edição da mostra, em 2010, que eu também pichei, me convidou para participar da Língua Solta, em cartaz no Museu da Língua Portuguesa”, reconhece. A obra à qual Cripta se refere tem autoria coletiva, foi feita com outros pichadores.
“De alguma forma, aquela invasão também abriu muitas portas para gente. Abriu não, nós forçamos a cancela. Hoje, o meio da arte contemporânea e de street art reconhece a potência do picho”, acredita. “Não é fácil. Tem uma questão de classe. Quem é artista normalmente teve acesso à educação. É preciso dominar a técnica, mas também o conceito, o que não é barato. Pichadores, na maioria, têm uma situação de analfabetismo funcional”, lamenta. Djan, que já expôs seus trabalhos na Fundação Cartier, em 2009, e na Bienal de Berlim, em 2012, além de uma individual na capital paulista em 2016, não se desanima com o futuro. “Sigo com a mesma energia, agora sendo um pichador dentro do meio de arte contemporânea. Mas não vou andar sozinho, quero levar muita gente”, promete.
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Publicado em VEJA São Paulo de 8 de setembro de 2021, edição nº 2754