No mês passado, quando a assistente administrativa Andreia Gomes saiu do estado do Tocantins e chegou ao endereço onde passaria a morar em São Paulo, na Rua dos Gusmões, no centro, ficou assustada com as cenas noturnas que viu: lixo espalhado pelo chão, calçadas sujas e centenas de consumidores de drogas. “Isso lembra um filme de zumbis”, comparou.
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Mas ao pôr os olhos na fachada do Edifício San Fernando, do qual se tornaria uma das primeiras moradoras, a jovem de 22 anos se surpreendeu positivamente. Com pintura fresca, branca com detalhes coloridos, o prédio de nove andares e 54 apartamentos (de 27 ou 35 metros quadrados) é voltado para a classe média. Tem dois elevadores novos, sensores de presença para acender as luzes dos corredores e uma área de serviço coletiva, com duas máquinas de lavar e uma secadora.
Está no coração da Cracolândia. Trata-se do primeiro empreendimento residencial na área desde 2005, quando a prefeitura lançou um plano para reurbanizar a região e tentou rebatizá-la de Nova Luz. Na prática, o cenário de degradação humana continua presente.
Agentes de saúde estimam que entre 400 e 500 usuários de crack frequentem a redondeza. Quem escolhe morar por ali, portanto, enfrenta um paradoxo entre o conforto do interior do imóvel e a desolação do lado de fora. “Ainda assim, achei que as vantagens compensariam os problemas”, afirma Andreia.
O Edifício San Fernando enquadra-se no que o mercado imobiliário chama de “retrofit”. Ou seja: não é uma construção nova, mas completamente reformada. Erguido em 1949, o prédio já abrigou um hotel e estava desativado havia mais de cinco anos. Sofria invasões de criminosos e mendigos, que deixaram o imóvel quando as obras começaram — sem resistência, segundo a construtora Arco, que investiu 2,5 milhões de reais na empreitada e não tem do que reclamar.
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Dos 54 apartamentos, apenas dois ainda não foram vendidos. Cada um deles custa entre 80.000 e 110.000 reais, ou cerca de 3.000 reais o metro quadrado, valor semelhante ao que se cobra em bairros como Jabaquara, na Zona Sul.
Para o arquiteto Arnold Pierre Mermelstein, responsável pelo projeto, esse tipo de empreendimento alavanca a valorização da região. “Duas construções próximas acabaram de ser pintadas”, conta ele. Enquanto a transformação do entorno prometida pela prefeitura não se concretiza, o funcionário de uma indústria cosmética Hugo Maritan e sua mãe, a dona de casa Maria Dercília, capricharam no conforto de sua quitinete no San Fernando, com móveis novos e TV de tela plana. “A decoração custou 12.000 reais”, conta ela.
Durante o dia, são obrigados a suportar o mau cheiro da sujeira deixada pelos viciados. Perambulando pelas calçadas enrolados em cobertores, muitos deles parecem inofensivos e, até agora, convivem em paz com os novos vizinhos.
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“Como só chego em casa de manhã, quando a maioria dos ‘noias’ já foi embora, não vejo problema em morar aqui”, explica o recepcionista de hotel Felipe Dionísio, de 26 anos, que chegou da Bahia há um mês e na semana passada se candidatava a inquilino de um dos imóveis de 27 metros quadrados do prédio, ao custo de 930 reais mensais, incluindo o condomínio.
Alguns dos proprietários apostaram no edifício como uma boa oportunidade de investimento, pensando em obter ótimo retorno financeiro no dia em que o bairro sofrer de fato uma transformação. “Estou confiante. Por isso comprei um apartamento aqui e outro nas imediações, na Avenida Duque de Caxias”, diz o advogado Fernando Brandariz.
Quando se olha atentamente para o cenário atual, porém, é difícil enxergar motivos para tanto otimismo. Durante a noite, a paz de alguns moradores costuma ser perturbada pela algazarra feita pelos dependentes nas calçadas. “Já tive de acompanhar vizinhas que estavam com medo de sair do prédio”, afirma o auxiliar administrativo Luciano Santos, 36 anos, que trabalha em uma empresa de cobrança perto dali.
Em um lugar onde o poder público é pródigo apenas em fazer promessas, esse tipo de situação mostra quanto os pioneiros do San Fernando ainda se sentem como intrusos na área ocupada há tempos pelos viciados.