Nos clássicos “Notre-Dame de Paris” (1831) e “Os Miseráveis” (1862), o escritor francês Victor Hugo assume verve política e histórica ao retratar a França da era medieval e do século 19. Mas se tivesse escrito uma autobiografia, provavelmente seria um romance passional de contornos trágicos.
Pela primeira vez após 210 anos de seu nascimento, a intimidade do escritor e de sua família é revelada em detalhes por meio de uma inédita seleção de desenhos, pinturas, livros, cartas, móveis e outros objetos pessoais, que irão a leilão no dia 4 de abril, na Christie’s de Paris. Cerca de 500 itens compõe a “Hugo’s Collection”. “A seleção foi feita durante um ano, com a ajuda dos atuais herdeiros. Foi excitante entrar em contato com material de tamanho valor histórico”, conta Jonathan Rendell, vice-presidente da Christie’s.
Ao passear pelos objetos, é possível revisitar histórias de amor e sobressaltos, como a do casamento de Victor Hugo e Adèle Foucher, em 1822, quando ambos tinham por volta de 20 anos. Assim que o enlace aconteceu, o irmão de Hugo, Eugène, que amava Adèle e sofria de problemas psiquiátricos, foi internado em um hospício. A sina se repetiu anos depois com a filha caçula do escritor, também de nome Adèle. Um amor não correspondido a enlouqueceu, literalmente — e o drama rendeu um filme de François Truffaut, “A História de Adèle H.”.
Pai de cinco filhos, Victor viu ainda seu primogênito, Léopold, morrer recém-nascido, e sua filha mais velha, Léopoldine, ser vítima de um afogamento aos 19 anos. Para completar a teia de emoções, seu casamento com Adèle foi marcado por mútua infidelidade: enquanto ela se envolveu com um amigo da família, o crítico literário Sainte-Beuve, ele manteve um longo relacionamento com a atriz Juliette Drouet, sua amante por 50 anos. Ainda assim, Victor e Adèle ficaram juntos a vida inteira.
Em carta manuscrita e avaliada entre 3 mil e 5 mil euros, ele se mostra apaixonado pela mulher: “Querida, digo-lhe pela milésima vez que te amo, te adoro, e se você me ama um pouco também, ficará feliz em ouvir isso, assim como sempre fico em repetir”. O mesmo amor dedicou à Juliette, musa de muitos de seus poemas e cujo retrato tem preço estimado entre 1 mil e 1,5 mil euros – igual ao de uma fotografia de sua esposa.
O que poucos conhecem e virá à tona com o leilão é o gosto de Hugo por desenhar. Ele deixou pelo menos 50 trabalhos, entre gravuras e painéis de madeira com traços à tinta, como o quadro “Live and Die”. Avaliado em 150 mil euros, estima-se que ele tenha sido feito durante o auto-exílio do escritor em Bruxelas, nos anos 1850. “Esses desenhos estiveram o tempo todo na casa da família, e, por incrível que pareça, não vieram a público antes porque ninguém havia manifestado interesse”, afirma Rendell.
Além do universo particular do escritor, a coleção mostra ainda que, assim como algumas tragédias familiares podem ser dinásticas, o talento para a arte, também: fotografias de seu filho Charles Hugo (a maioria retratos da própria família) e pinturas e desenhos de seu bisneto, Jean Hugo, devem atingir boas cotações. Os croquis de figurinos feitos por J. Hugo para a peça O Casamento na Torre Eiffel, de Jean Cocteau, encenada nos anos 1920, tem desenhos avaliados em 500 euros.