Enxergar uma paisagem efêmera através da janela é algo poético. Principalmente quando, do lado de dentro, o conforto das instalações é digno de um hotel cinco-estrelas e, nos trilhos adiante, está a sua única chance plausível de vencer despenhadeiros que não comportam estradas. Após um investimento de 2,5 milhões de euros que transformou os vagões do trem turístico Transcantábrico Clásico em catorze cabinessuítes superiores às do Orient Express (as do mítico comboio não têm banheiro completo, e essas têm até sauna!), desde maio de 2011 o Transcantábrico Gran Lujo percorre a linha do antigo Ferrocarril de la Robla, construído para transportar carvão pelo norte da Espanha no século XX. Equilibrado sobre vias estreitas (incompatíveis com o resto da rede ferroviária espanhola e administradas por uma companhia à parte, a Feve) que seguem paralelas à verdejante costa do Mar Cantábrico, o hotel de luxo sobre rodas sai de Bilbao, no País Basco, e atravessa as praias, montanhas e povoados das comunidades autônomas de Cantábria e Astúrias até chegar às proximidades de Santiago de Compostela, na Galícia — e vice-versa.
Forradas de madeira nobre, as cabines de 16 metros quadrados são separadas em três ambientes. O quarto tem TV de tela plana e uma cama (de 1,5 metro de largura por 2 metros de comprimento) com cabeceira forrada de couro macio. Na sala há um sofá, uma mesinha com dois bancos, dois armários, cofre, frigobar (todas as bebidas não alcoólicas estão incluídas no preço de 3.750 euros por pessoa em cabine dupla ou de 7.500 euros em individual) e uma escrivaninha com computador conectado à internet. O banheiro, ainda que compacto, é uma proeza para um trem: tem pia, espelho, sanitário e uma cabine high-tech com chuveiro, jatos de hidromassagem e sauna. É sensato evitar tomar banho com o trem em movimento. A bitola estreita faz com que o Transcantábrico balance, e muito, o que torna caminhar pelos corredores estreitíssimos uma aventura — e põe os hóspedes dos últimos vagões em certa desvantagem estratégica.
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A área social do comboio se distribui ao longo de quatro coches salón. “São vagões britânicos Pullman, originais de 1923 que já rodaram no metrô de Londres”, afirma a chefe de expedição Paula Izquierdo Díez, a quem cabe tanto chefiar o staff e atender aos pedidos especiais dos passageiros como providenciar sessões de cabeleireiro a uma senhora valenciana que, ao fim da viagem, veria seus esforços reconhecidos sendo eleita a “Miss Transcantábrico”. O restaurante tem mesas de dois lugares, posicionadas diante das janelas. Os espaços de lazer contam ainda com salão de chá e de jogos, biblioteca, lounge com sofás em frente a janelões panorâmicos e uma discoteca onde acontecem festas toda noite — nas quais o vinho do jantar garante um nível surpreendente de animação, embora a rotina comece cedo.
O toque de um sininho acorda os passageiros às 8 da manhã, enquanto, do lado de fora, os vilarejos da região mais úmida da Espanha aparecem timidamente sob a luz tênue do amanhecer, ainda envoltos em brumas. É nesse momento também que a serpente de ferro começa a mover-se. Durante a noite o trem descansa para que nenhuma nuance da belíssima paisagem seja desperdiçada na escuridão — e para que o trajeto, de 600 quilômetros, não se esgote em algumas horas. Dorme-se, portanto, ao lado das plataformas de sete estações ferroviárias diferentes, em geral agradáveis e ao ar livre. A exceção é a noite em Oviedo, capital de Astúrias, onde os apitos e os anúncios pelos alto-falantes começam às 5 da madrugada, para o infortúnio dos que se esqueceram de levar tampões de ouvido.
O café da manhã, única refeição feita dentro dos vagões todos os dias (apenas um almoço é servido no trem durante a viagem), acontece em movimento, demandando habilidades circenses dos cinco atendentes da tripulação — jovens, solícitos e de luvas brancas e impolutas — na hora de servir o café e o suco. Cabe a cada passageiro equilibrar-se até o bufê e servir-se dos demais itens: jamón ibérico, frios, queijos e quitutes regionais, frutas, pães, brioches e a imprescindível tortilla de patatas, elogiada efusivamente pelos passageiros espanhóis (doze dos 23 a bordo).
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A programação funciona nos mesmos moldes de um cruzeiro de navio, só que com passeios incluídos. Ao longo do trajeto, o Transcantábrico para em treze cidades. Um ônibus com confortáveis bancos de couro ainda leva os passageiros a outras seis e serve para fazer visitas panorâmicas, sempre sob a tutela da guia espanhola Bárbara Callizo (fluente em inglês e alemão), cujas boa vontade e simpatia mereceriam uma medalha de honra ao mérito. Se alguém preferir permanecer dentro do trem, deverá combinar com a chefe da expedição. Nem sempre há liberdade de ir e vir, uma vez que o comboio pode ficar estacionado fora das estações, como constataram os septuagenários australianos Tony e Jennie Boles, exaustos durante a visita a Oviedo, após uma manhã de caminhadas pelo parque Picos de Europa.
A empreitada é contraindicada para quem não curte excursões em grupo, já que socializar-se é inevitável, principalmente no período das refeições: cerca de cinco horas por dia são dedicadas ao almoço e ao jantar, os momentos mais esperados por todos. Como se trata do norte da Espanha, um dos melhores lugares do mundo para comer frutos do mar, eles predominam no cardápio. As nababescas refeições (em restaurantes de altíssimo nível, como o La Salgar, do chef estrelado Nacho Manzano, em Gijón) envolvem aperitivo, entrada, prato principal e sobremesa, além de vinhos (em sua maioria belíssimos tintos Ribera del Duero e brancos albariños de Rías Baixas) e licores, incluídos no preço e servidos fartamente.
“Isto aqui é La Grande Bouffe sobre rodas”, define o agente de viagens australiano Michael McMillan, numa alusão ao filme “A Comilança”, do diretor Marco Ferreri, em que um grupo de homens decide comer até morrer. Depois da orgia gastronômica, encerrar a viagem adentrando a catedral de Santiago de Compostela para a missa em homenagem aos peregrinos é uma ironia do destino. Para os interessados, a igreja dispõe de confessionários em vários idiomas.