Quando saiu pela primeira vez em português a história que escreveu sobre São Paulo, Richard M. Morse ficou irritado. Não com a tradução, menos ainda com o fato de o livro ser publicado no Brasil. A edição brasileira de “De Comunidade a Metrópole” fazia parte das comemorações do quarto centenário da cidade (1954), nada menos. Ganhou destaque, um lugar de honra na bibliografia paulistana.
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O problema era a resenha.
Nas altas-rodas acadêmicas frequentadas pelo historiador americano, tão importante quanto a obra é a recepção desta pela comunidade universitária.
Morse, que foi meu professor e guru, esperava uma resenha elaborada por um dos grandes pensadores da São Paulo de então. Talvez Antônio Candido, Florestan Fernandes ou, quiçá, Sergio Buarque de Hollanda, todos amigos dele. Mas não. Foi encarregado da resenha um jovem desconhecido, de apenas 26 anos de idade. Pode? O nome dele era Fernando Henrique Cardoso.
Dr. Morse, como eu o chamava, com carinho e respeito, adorava contar essa história. Orgulhavase dela. Quem poderia imaginar, àquela altura, que o autor da tal resenha viria a ser o presidente do Brasil (e amigo do Morse)?
FHC gostou do livro. Escreveu, no código secreto dos sociólogos da época, que era um dos melhores já escritos sobre a história da cidade, mas que fora montado sobre uma fundação de caos “metodológico”. Dr. Morse, de lendária originalidade intelectual, deve ter entendido esse último comentário como um elogio.
Lembrei-me desse episódio ao assistir, em um dos cinemas da Augusta com a Paulista, ao trailer do filme mais recente de Steven Spielberg, “As Aventuras de Tintim”, que estreia por aqui em janeiro.
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Uma coisa é uma coisa e outra coisa é outra coisa, como me ensinou o filósofo e baterista paulistano Marcos Sismotto, o Marcão, que é artista gráfico também. Mas o filme pareceu relevante à minha busca recente por um pensamento ou ponto de vista paulistano. Existe isso? Qual é o eixo da cultura da cidade de São Paulo? O que ela tem de próprio?
Morse dizia que era a capacidade de processar informações de diferentes tradições culturais. Citava o crítico literário e amigo Antônio Candido como exemplo. O professor Candido trazia, em sua biblioteca, toda a tradição brasileira, centenas de livros sobre o escritor francês Marcel Proust e, como se não bastasse, os últimos números da “Partisan Review”, revista nova-iorquina de vanguarda que publicou, entre outros, o poeta anglo-americano T.S. Eliot. Isso na década de 40 (antes da internet, portanto). Hoje, diga-se, deve estar ainda melhor a biblioteca do professor Candido.
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Morse considerava a “visão de baixo”, daqui do Hemisfério Sul, uma vantagem cultural em termos planetários. A posição geográfica favorecia um olhar cosmopolita e provinciano ao mesmo tempo, algo raro. Tal ponto de vista, segundo ele, ajudou na criação de escolas próprias de modernismo, sociologia e crítica literária. Acrescentaria eu, também de jornalismo e publicidade.
E o que isso tudo tem a ver com Tintim? É que não o li quando pequeno. Como a maioria dos americanos, nem sequer ouvi falar dele. Minha mulher, Luli, paulistana, fica indignada com essa falha na criação dos gringos. Antes de me conhecer, ela acreditava que Tintim fosse universal.
Bom, agora será. O diretor Steven Spielberg descobriu o personagem do belga Hergé no lançamento europeu de “Indiana Jones”. Amou. Vai apresentá-lo, enfim, e em grande estilo, aos americanos. São Paulo conhece Tintim há muito tempo, tal como Super-Homem e dezenas de personagens de gibi do Japão e do mundo todo. A cidade é mais cosmopolita e modernosa nesse sentido do que outros lugares. Dr. Morse tinha razão. Pensei nisso no cinema da Rua Augusta. Até os americanos serão globalizados.