“Existe um vazio ao olhar para o espelho e não saber de onde vim. Não sei de quem herdei meu 1,82 metro de altura, a minha cor clara…” Sentado no sofá cinza-claro de seu apartamento em Santos enquanto beberica uma xícara de café pelando de quente, o senhor de cabelos grisalhos começa a se emocionar e um manto de lágrimas se forma sobre os olhos azuis quando fala do passado. No dia 27 de maio de 1940, alguém tocou o sino da roda dos expostos.
O dispositivo de madeira, com um buraco de 50 centímetros voltado para a calçada da Rua Dr. Cesário Mota Júnior, servia para mães abandonarem seu filho na Santa Casa de Misericórdia sem que precisassem se identificar. O badalo alertava para a chegada de um bebê de camisa azul e um vestido da mesma cor, com detalhes em vermelho. Também havia duas toucas de crochê e um cobertor.
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Após realizarem um exame, os médicos avaliaram que a criança estava com 8 meses. As enfermeiras da entidade escolheram o nome e o sobrenome, Milton Fagundes, que foi registrado com data de nascimento de 27 de setembro de 1939, um dia depois da festa de Cosme e Damião, os santos gêmeos, protetores das crianças. Passados 76 anos, Fagundes ainda pensa no que perguntaria se tivesse a oportunidade de um dia encontrar quem o largou na porta do hospital. “Passam mil coisas pela minha cabeça, talvez ela tivesse uma razão forte para isso. Nunca terei a resposta”, conforma-se.
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Milton Fagundes é um dos quatro paulistanos ainda vivos da roda dos expostos. O dispositivo operou de 1825 a 1950. Nesse mais de um século de funcionamento, calculam as profissionais responsáveis pela memória da Santa Casa, foram deixadas ali 4 696 crianças. Na média, quase uma por semana no período. As razões para isso ocorrer eram variadas. “Muita mãe solteira deixava o filho por temer o preconceito da sociedade”, conta June Arruda, diretora do museu da instituição.
“Mas era comum também as mães rejeitarem deficientes, assim como o fruto de um adultério ou de uma relação entre um branco e uma escrava. ”Quando o hospital começou a fazer essa acolhida, contratava os serviços de amas de leite. Elas recebiam salário de 30 000 réis por mês para alimentar as crianças. Por isso, acabaram conhecidas como “mães mercenárias”. Essas mulheres levavam os bebês para sua casa e, uma vez ao mês, iam ao hospital para receber o pagamento. O método não foi bem-sucedido. Em média, cerca de 30% das crianças morriam. Para diminuir o número de óbitos, em1905 a Santa Casa criou um prêmio para as três lactantes que apresentassem as crianças mais gordinhas. A vencedora ganhou 100 000 réis.
No começo dos anos 1900, o hospital começou a abrigar os órfãos que brincavam por seus pátios e corredores. A convivência dos pequenos saudáveis com doentes de toda sorte era ruim. O tratamento dispensado às crianças deu um salto de qualidade a partir da década de 40, quando elas passaram a ser levadas para o abrigo Sampaio Vianna, localizado em um casarão do Pacaembu.
Foi lá que Milton Fagundes morou até completar 12 anos. “As freiras nos davam uma educação rigorosa, com horário para acordar, comer e dormir”, lembra. O convívio nem sempre era com as mesmas pessoas. Alguns de seus colegas morreram e outros ganharam uma família. Ele também teve a oportunidade de ser adotado, mas não quis. “Perguntei se aquela era minha mãe de verdade. Como não era, eu me recusei a sair de lá”, recorda.
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As datas festivas não passavam em branco. Na véspera do Natal, as enfermeiras acordavam as crianças às 23 horas para que fossem à Missa do Galo. “Quando retornávamos, era uma alegria: havia sido deixado um presente debaixo de todas as camas”, conta Fagundes. Já perto da adolescência, ele foi transferido para a Escola Agrícola Salesiana São José, em Campinas, também ligada à Santa Casa. “O colégio interno era enorme e ficava na zona rural”, conta.
Um dos compromissos dos alunos consistia em cuidar do rebanho de bois. Apaixonado por futebol, ele era um dos primeiros a ser escolhidos para compor o time na hora do recreio. Jogava como lateral esquerdo. Na instituição de ensino, formou-se técnico em tornearia mecânica. “Não era uma profissão de que eu gostava, mas, na minha condição, não dava para escolher muito.” Ao completar 18 anos, alistou-se no Exército e serviu no departamento antiaéreo. Sua missão era fazer o controle do estoque de armas e balas. Ficou um ano em um quartel localizado em Campinas.
Ao sair de lá, conseguiu emprego na Rhodia, o gigante da indústria química. Juntando as economias de sua época de militar com parte do salário de operário, Fagundes conseguiu realizar um sonho de consumo na época: a compra de uma lambreta preta. Nas horas vagas, montado na scooter decorada com dois adesivos de caveira em sua lataria, percorria as cidades vizinhas para passear e paquerar. Em uma dessas andanças, seus olhos claros se interessaram pelo jeito de menina de Elenir, então com 15 anos. “Nós nos encontramos em frente ao coreto da praça, na cidade de Paulínia, onde eu morava”, lembra ela. A adolescente era a filha do meio e vivia sob os cuidados do pai — sua mãe havia falecido de câncer quando ela tinha 8 anos. Fagundes e Elenir não se desgrudaram mais.
O namoro progrediu e, para se casar na igreja, o noivo precisaria apresentar seu documento de batismo. Não o tinha. O então futuro sogro fez as vezes de padrinho. A questão de documentação sempre trouxe contratempos ao órfão da Santa Casa. Certa vez, em uma viagem para a Alemanha, Fagundes ficou retido no setor de imigração. Os policiais queriam entender porque em seu passaporte não constavam o nome do pai e o da mãe. “Passei uma hora tentando explicar a minha situação”, lembra ele. Esclarecida a confusão, ele conseguiu entrar no país. “Esse tipo de questionamento sempre me entristeceu”, conta Fagundes. “No colégio, quando meus amigos queriam me xingar, falavam a palavra ‘bastardo’.”
Os três outros sobreviventes da roda dos expostos continuaram a vida inteira aos cuidados da Santa Casa. Eles moram em um hospital da entidade, o Dom Pedro II, no Jaçanã, devido a problemas de saúde. José Alberto (não há sobrenome em sua certidão de nascimento), 71 anos, sofre de autismo. Maria Celina Alves, 69, tem oligofrenia, um tipo de retardamento mental.
Já Damaris Felipe dos Santos, 82, sofreu paralisia infantil; ela foi abandonada com 6 meses, em janeiro de 1934 (o documento de entrada dela na entidade foi perdido, então não há como precisar o dia exato em que isso ocorreu). Dona de uma memória tão boa quanto seu humor, Damaris lembra nomes e datas que marcaram sua vida de órfã. Foi batizada por uma enfermeira (“Helena Bonelli’) e um médico (“Quino de Andrade”). Aos 12 anos, foi transferida para o Dom Pedro II.
A paralisia limita sua locomoção, mas não a criatividade. Depois de fazer sua sessão diária de fisioterapia, a senhora de sorriso largo passa as horas costurando almofadas de ponto de cruz. As peças são dadas de presente às enfermeiras e aos voluntários. O carinho é recíproco. Ela não tira da mão um celular que ganhou de presente de uma funcionária do lugar. Se ela recebe ligação? “Claro, para comentar quando meu time ganha”, conta a corintiana. Ela adora maquiagem (“Antes usava sombra e pó de arroz, agora passo só batom”), roupas rosa (“Minha cor favorita”) e falar de suas conquistas (“Tive quatro namorados dentro do hospital, mas todos já morreram”).
Também gosta de escrever e fez um poema dedicado às mães. “JesusCristo / Nosso amigo e irmão / Abençoai todas as mães / Para que elas possam cumprir sua Missão.” Ela vive em um dormitório com outras 21 pessoas, onde há três aparelhos de TV. No momento, tem acompanhado a novela bíblica Escrava Mãe, da Record, e sente saudade do programa sertanejo de Inezita Barroso, falecida em março de 2015.
Na metade do século XX, o movimento na roda dos expostos começou a rarear. Dois fatores contribuíram para isso. De um lado, a Santa Casa teve dificuldade para manter esse tipo de serviço. Do outro, programas do governo estadual, como a criação da antiga Febem, passaram a ser mais atuantes com relação à situação dos órfãos da cidade. Hoje em dia, as gestantes que não querem ficar com seus filhos podem deixá-los na maternidade após dar à luz. Os bebês são encaminhados a uma das varas da Infância e da Juventude da capital.
“Se ela fizer a doação de forma regular, comparecendo em juízo para registrar o desinteresse pela criança, o processo de destituição é rápido”, conta a juíza Mônica Gonzaga Arnoni. “Há casos em que a mulher tem o filho na sexta e ele já é adotado na segunda.” Nos últimos doze meses, 72 crianças foram deixadas nos hospitais públicos do Estado de São Paulo. Só na Santa Casa, registraram-se quatro casos neste ano. Quando ocorre o abandono às escondidas (como os horríveis casos de mães que deixam o filho na rua), as crianças ficam em um dos 134 centros de acolhimento da prefeitura. Nessa situação, se for descoberta, a responsável será processada por abandono de incapaz. A pena pode variar, de acordo com o agravante, de seis meses a doze anos de prisão.
Mesmo para quem deixou a Santa Casa há muito tempo, o local ainda serve de referência de vida pessoal. Milton Fagundes sente muita curiosidade por seu passado. Ele já foi algumas vezes ao museu da instituição para ler a respeito dos órfãos e também sobre o colégio onde estudou. “Se não fosse a Igreja Católica, não estaria vivo”, diz ele, devoto de Nossa Senhora Aparecida. “Ela é a mãe de Deus, sabe o que é proteger e cuidar de um filho.” É comum ele se emocionar nas missas, nos domingos de manhã, quando o padre reza a Ave-Maria.
Suas três filhas têm nome composto iniciado por Maria (Maria Beatriz, 50 anos, Maria Maidilene, 47 e Maria Giziane, 43). Aposentado desde 1989, ele hoje se diverte montando e desmontando objetos como cafeteiras e liquidificadores. Circula por Santos com uma de suas três bicicletas. “Já fui até Bertioga e Ilhabela pedalando”, orgulha-se. Tira o carro da garagem apenas para ir ao aeroporto. A cada dois meses, ele e Elenir vão a Brasília para visitar a filha caçula, mãe de suas duas netas. “Também converso com elas pelo Skype”, afirma. “Mas como tenho um problema de audição, prefiro falar ao vivo mesmo.”
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Em sua casa, o objeto de decoração mais adorado é um porta-retratos que fica em destaque no centro da sala. Na foto, tirada na sua infância, ele está com cara de choro. Trata-se do único registro desse período. Quando morava no alojamento da empresa Rhodia, roubaram seu quarto e levaram de lá o baú onde guardava todas as suas imagens antigas e uma gaita, dada de presente pelas freiras da Santa Casa.
Não conseguiu recuperar nada. Décadas depois, foi ao museu do hospital com a esperança de encontrar algum material do seu passado. Por sorte, havia nos arquivos uma foto dele, com idade aproximada de 5 anos, a mesma hoje que guarda como um talismã na sua residência. “Ficou um buraco por eu não ter tido mãe, mas foi um ato de amor ela ter me deixadona Santa Casa. Graças a isso, sou um sobrevivente que se casou, teve três filhas e tem duas netas.”
MEMÓRIAS DA SOLIDARIEDADE
Registros mostram a rotina decrianças deixadas pela mãe
Colaborou Sérgio Quintella