Por volta das 22 horas de 1º de setembro tem início mais uma sessão de “Velozes e Irresponsáveis” na Rua Lauro de Gusmão Silveira, em Guarulhos, na vizinhança do Aeroporto de Cumbica. Um dos primeiros a aparecer é o dono de um Fusca 72 azul, com placa de São Paulo. “E aí, ‘mano’, hoje vai ser o bicho, hein?”, pergunta ele, acelerando o motor envenenado para provocar os adversários. “Chego a mais de 150 quilômetros por hora até o fim da pista”, gaba-se.
O primeiro a desafiá-lo é um Range Rover. Os veículos emparelham no meio da via. Um mecânico que ajuda a preparar os bólidos da turma põe-se entre os dois automóveis e dá o sinal de largada. Centenas de espectadores aglomerados ao redor, alguns até com bebês no colo, esticam o pescoço para ver quem chegou na frente. Outros sobem nas carretas estacionadas na área para ter uma visão melhor. A maior parte da plateia, que torcia para o “primo pobre”, vibra quando o velho Volkswagen supera o esportivo da Land Rover, quase quarenta anos mais novo e milhares de reais mais caro.
Ao longo da noite, mais de cinquenta rachas se sucedem no “Atacadão”, como o local ficou conhecido entre os frequentadores, por causa do supermercado das redondezas que serve de ponto de referência. A reportagem de VEJA SÃO PAULO acompanhou cinco vezes esse movimento nos últimos dois meses. Somente em uma dessas ocasiões apareceu uma viatura de polícia, que espantou o grupo de lá. Meia hora depois, no entanto, a folia recomeçou no pedaço, como se nada tivesse acontecido.
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Um dos modelos mais frequentes é um Audi TT azul 2013, adaptado para um cadeirante. Seu proprietário sofreu há quatro anos um acidente de moto que o deixou paraplégico. Em seu Facebook, o empresário de 40 anos já postou vídeos de uma arrancada. “Eu e meu sobrinho brincando com uma BMW M5”, escreveu.
A mesma atividade ilegal se repete com frequência em vários outros pontos, a exemplo da Avenida dos Estados, em Santo André, no ABC paulista, perto do posto de gasolina Cabeça Branca. Ali, por noite, ocorrem duas ou três sessões de arrancadas, mas sem muitas testemunhas. “Não gosto de showzinho, de plateia”, afirmou um dos participantes, com a condição de não ser identificado.
Dono de um Gol GTI 93, o jovem, que aparentava ter pouco mais de 20 anos, contou que gastou 40 000 reais em uma oficina especializada para aumentar em seis vezes a potência do motor. “Certa vez, dei 250 quilômetros por hora com ele na Via Anchieta”, gabou-se. Na capital, os adeptos das corridas costumam se reunir na Avenida Jacu-Pêssego, em Itaquera, na Zona Leste. Outro ponto tradicional fica na Marginal Pinheiros, nas imediações da Ponte Cidade Jardim.
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No Brasil, irresponsabilidade ao volante não costuma resultar, na prática, em punição à altura do perigo a que a população é exposta. Para quem for flagrado fazendo pegas, prevê-se de seis meses a três anos de detenção mais multa de 1 915,38 reais (ela aumentará para 2 934,70 reais em novembro) e suspensão ou cassação da carteira de motorista. As penalidades em outros países se mostram mais efetivas.
No Canadá, por exemplo, no distrito de Ontário, as multas variam de 2 000 a 10 000 dólares canadenses (ou seja, atingem mais de 24 000 reais). Nos Estados Unidos, além de o crime doer no bolso e dar cadeia, dependendo da situação, o carro do infrator chega a ser leiloado ou destruído. E atá quem assiste aos eventos ilegais recebe uma fatura pelo delito.
Enquanto em outros locais a lei se faz valer, aqui é desanimador ver quantos criminosos passam impunes. Até hoje, a costureira Solange Rodrigues aguarda na Justiça o julgamento de Vagner Fraga Ferreira. Em novembro de 2013, ele conduzia um Fiat Stilo amarelo em alta velocidade perto da Ponte do Piqueri, na Lapa. Ao atravessar a rua na faixa de pedestres, Jéssica Silva, de 22 anos, que ia para um show na companhia de amigos, foi atropelada pelo veículo.
Seu corpo varou o para-brisa. Nem assim o motorista parou o automóvel. Avançou por alguns metros e abandonou o local sem prestar socorro. Ele se apresentou no dia seguinte à delegacia, com a habilitação vencida. Em seguida, foi indiciado por homicídio com dolo eventual (pena de seis a vinte anos de cadeia, se for condenado).
O caso ainda está na fila dos tribunais. “É um absurdo ninguém ter sido punido”, indigna-se Solange, que passou a cuidar da filha de Jéssica, hoje com 7 anos. “Fiquei despedarada”, completa a costureira. Guarda civil metropolitano, Renildo dos Santos, de 34 anos, pai de duas crianças, teve a vida ceifada de modo parecido em junho do ano passado. Uma BMW envolvida em um racha na Avenida dos Bandeirantes atingiu violentamente seu carro.
Em uma tragédia ainda mais chocante, o eletricista Valdeni da Silva e sua filha Larissa, de apenas 2 anos, faleceram após uma batida em uma avenida do Tremembé há quase dois anos. O automóvel da família ficou completamente destruído. Também a bordo, a esposa e a outra filha, de 5 anos, foram internadas em estado grave, mas sobreviveram. Causador do acidente, Walter Fernandes Lopes já havia atropelado quatro pessoas em 2008 (uma delas não resistiu aos ferimentos). Tanto no caso do GCM Renildo quanto no de Valdeni e sua filha, os responsáveis nunca foram presos.
Os rachas são um problema antigo de São Paulo, e uma das soluções tentadas pelas autoridades foi buscar atrair os corredores para Interlagos. A partir dos anos 70, começaram a ser organizadas no autódromo provas de arrancadas para amadores, com todo o aparato de segurança. A adesão, porém, nunca foi muito relevante. Aos últimos eventos do tipo compareceram cerca de 150 “pilotos”, que pagam uma taxa de até 300 reais para participar da competição.
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O engenheiro William Kishi, de 28 anos, é um dos frequentadores. Gastou mais de 100 000 reais para turbinar seu Gol 2011. “A emoção e a satisfação compensam o investimento”, explica. Apesar de frequentar o circuito oficial, ele confessa dar umas escapadas de vez em quando para acelerar nas ruas da cidade. “Vou a Interlagos apenas duas vezes por mês. É pouco”, justifica. “Mas não ponho a vida de ninguém em risco”, completa, sem se dar conta da contradição entre o discurso e o ato irresponsável.
Apenas 65 multas por participação em rachas foram aplicadas na Grande São Paulo no ano passado. O comando da Polícia Militar, por meio de uma nota oficial, diz que investe na repressão a esse tipo de crime. Mas até hoje ninguém tomou medidas efetivas para acabar com a barbaridade do “Atacadão” de Guarulhos, que rola por lá há pelo menos dez anos. “Só não terminam com isso porque não querem”, diz um frequentador. “Bastava pôr lombadas no trajeto.”
Em maio, uma blitz da PM na Cidade Jardim resultou em 82 carros multados e oito apreendidos. Recentemente, os rachas começaram a ocorrer novamente no pedaço. Com a ajuda das redes sociais e do WhatsApp, os motoristas vão organizando novas corridas. Graças à fiscalização frouxa e à certeza da impunidade, a cara de pau e a ousadia dessa turma só aumentam. No próximo 17 de setembro, por exemplo, um grupo com mais de 100 adeptos marcou pelo aplicativo de celular o “arrancadão do século”. Eles prometem sair da Praça Charles Miller, no Pacaembu, e acelerar até o Km 125 da Rodoviados Bandeirantes, já nas redondezas da cidade de Santa Bárbara D’Oeste.
ALTA VELOCIDADE
Alguns dos números relativos ao problema de trânsito
915,38 reais é a multa para quem for pego tirando racha
2 934,70 reais será o valor da penalidade a partir de novembro deste ano
65 é total de infrações do tipo registradas na Grande São Paulo em 2015. Até junho deste ano, o número chegou a 26
3 anos é a detenção máxima para quem for condenado. Ela pode dobrar caso haja acidente com vítima e chegar a dez anos se ele for fatal
*Com reportagem de Carolina Giovanelli