Desde que a quarentena chegou a São Paulo, na metade de março, os moradores e síndicos dos mais de 20 000 edifícios paulistanos têm descoberto um novo rol de rusgas, dúvidas e situações inusitadas. Nas áreas comuns, emergem discussões de toda sorte — “Dá para usar a quadra?”, “O vizinho pode deixar os sapatos no hall?”, “Seria bom tirar os tapetes?”. Dentro das unidades, os dilemas vão da presença das empregadas às reformas emergenciais. O volume de lixo se multiplicou, agora que mais pessoas cozinham em casa. Famílias confinadas fizeram as reclamações sobre o barulho disparar. O mesmo deve acontecer com os boletos em atraso, preveem as administradoras.
Os 200 000 funcionários dos prédios da cidade, a parte mais vulnerável dessa equação, passaram a precisar de equipamentos e horários especiais, para evitar ônibus e metrôs cheios. Em grupos de WhatsApp, correm soltos a exposição e até o preconceito contra moradores infectados pelo novo coronavírus. E os síndicos, os para-raios onde caem esses problemas, estão sob alta pressão. Para cuidarem da tempestade de situações inéditas, eles se viram obrigados a encontrar soluções criativas.
“Agora que os moradores passam o dia nos apartamentos, os prédios se tornaram uma bomba-relógio. As queixas e dúvidas que recebemos dobraram após a quarentena: foram de 150 para 300 por dia”, diz Rafael Bernardes, dono da Patrimonius, uma empresa de síndicos profissionais que cuida de trinta edifícios em São Paulo. Na Lello, responsável por 2 100 condomínios na cidade, a quantidade de e-mails recebidos com perguntas de síndicos aumentou 30% após a Covid-19. “Eles estão pedindo ajuda. Os síndicos precisam lidar com situações novas e tomar decisões delicadas quase sempre de forma solitária”, diz Angélica Arbex, gerente-geral de relacionamento da administradora.
As confusões surgidas após a Covid-19 envolvem coisas tão prosaicas quanto os tapetinhos na entrada dos apartamentos. “Todo mundo começou com a história de tirar o capacho e colocar os sapatos do lado de fora (do apartamento)”, conta Mara Regina, 56, moradora de um condomínio no Ipiranga. “Foram reclamar com o síndico, acharam que os calçados estavam infectando o prédio. Ele soltou um comunicado em que obrigava os moradores a colocar (os sapatos) dentro de casa. Teve até caso de roubo de sapatos”, diz. Deixar os calçados no hall pode ser uma boa ideia, afirmam as administradoras, porque isso realmente evita que o vírus entre em casa. Desde que exista moderação: um par de sapatos por morador.
Uma resposta construtiva para essa questão surgiu em um prédio da Zona Sul onde mora Victor Gaeta Marchi, 27. “Os condôminos receberam a recomendação de substituir capachos e tapetes por panos com água sanitária. Assim, você limpa os tênis antes de entrar em casa”, ele explica. “Como o vírus vive em superfícies por algum tempo e você pode carregá-lo na sola do sapato, achei a medida boa”, diz o morador, que trabalha como auxiliar administrativo em um hospital da Zona Leste.
Outro desafio é o expressivo aumento do lixo. “Agora, todos cozinham em casa”, afirma Ana Beatriz Camata, 38, síndica de um condomínio de 120 apartamentos no Ipiranga. “Tivemos de mudar o horário de coleta, além de fazer parceria com uma cooperativa de catadores de recicláveis.” A alta da inadimplência, mais uma possível consequência da paralisação na cidade, também preocupa os responsáveis pela gestão. “Em abril, tivemos uma subida de 3 pontos porcentuais nos boletos não pagos, mas estamos esperando um tombo de até 50% na arrecadação nos próximos meses”, diz Bernardes, da Patrimonius. Para síndicos e administradores, as soluções são renegociar contratos com fornecedores, deixar para depois a cobrança dos fundos de reserva e até perdoar as multas e juros aos inadimplentes, para ajudá-los a superar as dificuldades econômicas.
Mas a questão mais delicada para os condomínios, nos tempos de Covid-19, talvez seja a segurança dos funcionários. Esse contingente, na imensa maioria das vezes, segue usando o transporte público em meio à escalada da pandemia na cidade. “Os funcionários são a ponta solta dessa história, a parte que não está sendo solucionada”, diz Angélica, da Lello. Comprar álcool em gel e máscaras de proteção para as equipes, uma óbvia necessidade, tem sido uma missão quase impossível. “Fiz um estoque de 700 galões de 5 litros de álcool em gel em janeiro, quando começaram as notícias do novo coronavírus. Também consegui 2 000 máscaras. Mas tem sido uma batalha épica”, conta Bernardes. Além dessas proteções, as administradoras recomendam manter apenas as funções essenciais (como segurança e limpeza) e mudar a escala, para que os trabalhadores se desloquem fora dos momentos de pico.
O sindicato desses funcionários, o Sindificios, tem recebido uma média de 200 ligações por dia nas últimas semanas. São, quase sempre, reclamações sobre negligências e dúvidas dos síndicos. “Houve prédios que obrigaram os funcionários a comprar álcool em gel do próprio bolso — e não foram um ou dois casos”, revela Paulo Ferrari, presidente do Sindificios. “O que mais percebo é que os trabalhadores estão com medo.”
Não raro, os problemas dos prédios estão ligados diretamente a casos suspeitos ou confirmados da doença. “O que atrapalha muito, nessas situações, é o pânico”, diz Carlos Eduardo Santos, 34, síndico de um edifício com uma folgada maioria de idosos em São Bernardo do Campo. Três casos suspeitos já surgiram no condomínio — um deles ainda aguarda o resultado do exame. “Os moradores me pressionam a investigar se foram confirmados. Uma senhora pediu que eu bloqueasse a porta do prédio, para que ninguém entrasse nem saísse”, conta.
Quando um caso é confirmado, a conversa fica ainda mais tensa. “No condomínio onde moro, no Brooklin, tivemos um dos primeiros doentes do país”, diz Júlia Branco, advogada da LAR.app, administradora de quarenta prédios em São Paulo — e outra empresa que registrou uma disparada nas queixas de barulho e dúvidas dos síndicos. “Foi um pânico generalizado, as pessoas queriam saber a qualquer custo quem estava doente. Houve até discriminação”, conta. As administradoras recomendam que o síndico não identifique a pessoa infectada, para não expô-la. “Além disso, não cabe ao condomínio notificar a Anvisa ou o Ministério da Saúde. Isso é função do hospital que confirmou o exame”, explica Angélica, da Lello.
O grupo de WhatsApp de um prédio no Alto do Ipiranga não parou de tocar em 19 de março, após um caso de Covid-19 ter sido confirmado no local. Dias antes, o morador havia circulado pela brinquedoteca e pelo parquinho, áreas compartilhadas pelos outros 311 apartamentos. “Foi uma bomba, aquele pânico. Muita gente dispensou os funcionários”, conta Graziella Moura, 44, administradora do grupo. “Passei a receber muitas mensagens em particular. Nossa vida virou de cabeça para baixo.” As áreas comuns foram fechadas, e a rotina do prédio mudou. O lixo, antes colocado pelos moradores em contêineres no subsolo, agora é deixado no hall de serviço. A limpeza foi intensificada, e os elevadores são higienizados a cada duas horas.
Se um caso de Covid-19 pode provocar alarmismo, pior é um prédio passar por uma relativa infestação. Em 23 de março, os moradores do Condomínio 2001, o popular “BNH do Alto de Pinheiros”, conjunto de 49 blocos próximo ao Parque Villa-Lobos, receberam uma circular perturbadora: “Cinco casos confirmados, um óbito”. No fim da mensagem, a síndica previa um cenário caótico: “Estamos caminhando para o distanciamento social de todos os funcionários, e, caso o condomínio venha a parar por completo, os serviços essenciais (limpeza, lixo, correio) não serão realizados”. A administração não retornou o contato da reportagem. “Estamos saindo só para pegar comida e jogar o lixo”, afirma uma moradora.
Mesmo quando a saúde dos vizinhos está em risco, há quem insista em descumprir as regras da quarentena. “Nosso condomínio tem 321 apartamentos, é quase uma cidade”, diz Ivai Almeida, 61, síndico do Flórida Penthouses, na Cidade Monções. “Tivemos de proibir as obras não emergenciais — como um cano estourado — nos apartamentos. Mas sempre existe um ou outro que não tem o espírito de coletividade. Hoje chegaram dois prestadores de serviços e não puderam entrar. O morador desceu e disse que eram parentes, visitas. Tivemos de liberar, mas pedi que seja multado”, ele conta. “Dia desses, outro morador disse que iam só entregar um armário na casa. Depois, passou o dia todo usando a furadeira, em desrespeito a quem está em home office.”
Em meio a tanto rebuliço, é um alento quando um síndico abraça uma iniciativa mais ousada para lidar com a quarentena — mesmo que, para isso, precise superar algumas limitações. Aos 75 anos, Raquel Bettoi administra um condomínio em que a maioria dos moradores são idosos, no bairro do Belenzinho. Ela tinha um dilema a resolver. Precisava fazer a assembleia de prestação de contas e planejamento anual, que estava atrasada. Mas seria impossível reunir um grupo de velhinhos e velhinhas em um salão fechado em tempos de Covid-19. Raquel decidiu organizar uma videoconferência, que vai acontecer no fim de abril. “Eles são resistentes à informática, mas aos poucos estamos conseguindo deixar tudo pronto”, ela conta. “Eu também sou de uma geração que tem dificuldade com essas coisas. Mas, numa hora dessas, penso que se não existisse a internet seria um caos. Por e-mail a gente resolve tudo num instantinho, não é?”
Os bons exemplos, felizmente, são a maioria. No mesmo condomínio em que moradores burlaram as regras, em Cidade Monções, surgiu uma ótima solução para ajudar os funcionários — e a adesão foi avassaladora. “Queríamos agradecer aos que seguiam trabalhando neste momento. Como não sabíamos se seria melhor comprar alimentos ou kits de higiene, optamos por uma doação em dinheiro”, conta Eleonora Ferraro, 33, uma das organizadoras da iniciativa. “Temos 54 funcionários. Nossa meta era conseguir dar uma ajuda de 100 reais a cada um”, diz. “Mas as doações não paravam de chegar… Quando somamos, vimos que 85 moradores haviam colaborado e pudemos dar 240 reais a cada servidor do prédio.”
Sem dúvida, a pandemia pede soluções como essas — e não problemas extras. Na quarentena, velhas regras como a educação e a gentileza entre vizinhos devem ser usadas feito álcool em gel: sem moderação. “É um momento em que todos precisam ter mais humanidade”, diz o síndico Carlos Eduardo Santos. “Cada morador deve ter consciência de que não foi apenas ele que mudou a rotina e está irritado: os apartamentos vizinhos passam pelo mesmo”, ensina. “E os síndicos também.”
FUNCIONÁRIOS PROTEGIDOS
Cuidados para não expor as equipes do seu condomínio ao novo coronavírus
1 – Apenas serviços essenciais, como segurança e limpeza, devem permanecer em funcionamento
2 – O síndico precisa montar uma escala alternativa para permitir que os funcionários se desloquem pela cidade fora dos horários de pico
3 – Os sapatos e as roupas usados pelo funcionário para ir ao trabalho têm de ser retirados quando ele chega ao condomínio
4 – Os porteiros e outros funcionários necessitam de uma sala adequada para fazer a troca de roupa
5 – Para não correrem riscos, os porteiros não devem ter contato com encomendas trazidas por entregadores
Publicado em VEJA SÃO PAULO de 15 de abril de 2020, edição nº 2682.