Distante dos olhos da maioria dos paulistanos, cresce uma São Paulo verde e comestível. A mancha rural, que parece inimaginável na floresta de concreto, mas que ocupa cerca de 30% do território da metrópole, de acordo com o Plano Diretor Estratégico, espalha-se em especial pela região de Parelheiros, no extremo da Zona Sul.
É lá que trabalham agricultores ligados à Cooperativa Agroecológica dos Produtores Rurais e de Água Limpa da Região Sul de São Paulo (Cooperapas) que ilustram algumas fotos desta reportagem, como a sitiante Maria de Lourdes Januario Bispo e sua filha, Regiane.
Na propriedade, com 4 hectares, onde foi feito o ensaio, ela mantém há dois anos hortas com alface, beterraba, cenoura, manjericão, milho e mandioca cultivados de maneira orgânica. Aos sábados, dona Lourdes embarca seus produtos e os dos colegas cooperados para venda no Modelódromo do Ibirapuera.
Numa escala bem menor, na Zona Leste, há uma concentração de hortas urbanas, particularmente no bairro de São Mateus. Nas duas regiões da cidade, parte dessas produções, livre de pesticidas e fertilizantes químicos, tem em comum o fato de ser orgânica ou estar em fase de transição.
Um dos primeiros chefs a descobrir e valorizar a capital agrícola foi a argentina Paola Carosella, conhecida no Brasil todo por sua participação como jurada do reality culinário MasterChef, que estreia a nova temporada na terça (6). “Desde a época que tinha o (extinto) Julia Cocina, queria servir orgânicos produzidos em São Paulo”, conta a premiada cozinheira.
Hoje, ervas e verduras de seu restaurante, o Arturito, o melhor endereço de cozinha variada por VEJA COMER & BEBER, vêm de Parelheiros. Há até uma caprichada salada de alface com o nome do bairro no menu. A boa notícia é que, além de serem servidas nesse e em outros lugares de culinária refinada, essas hortaliças farão parte da merenda de 1 490 escolas da rede municipal.
Maior celeiro urbano da capital, Parelheiros concentra uma área de preservação ambiental em uma franja no sul da cidade que avança em direção à Serra do Mar, onde os termômetros chegam a marcar 4 graus a menos na comparação com a Sé, sempre com muita umidade. Para chegar lá a partir do centro, é preciso rodar um mínimo de duas horas de carro num domingo sem trânsito.
Vencido o perímetro de moradias, começa-se um rali por estrada de chão batido que corta o retalho de sítios e chácaras junto à mata nativa, nos quais o celular se torna um objeto quase decorativo — a telefonia móvel é um serviço difícil de funcionar por lá. “O último levantamento de agricultores da região foi feito em 2012. Acredito que hoje sejam cerca de 500”, calcula o geógrafo Arpad Spalding, membro do Instituto Kairós, dedicado ao consumo responsável, e do Conselho Municipal de Desenvolvimento Rural (CMDR). Ele é dono de 31 hectares, dos quais apenas 1,5 é cultivado.
Do total de horticultores estimado por Spalding, menos de 10% dedicam-se à lavoura orgânica. Assim como o geógrafo, esses camponeses reúnem-se em torno da Cooperapas, fundada em 2011. No momento, há 36 cooperados e dez interessados no ingresso. Nem todos podem ser considerados orgânicos, mas encontram-se em fase de transição, mudando a forma de cultivo de acordo com as normas agroecológicas.
Nos últimos três anos, sob o comando de Valéria Maria Macoratti, a cooperativa se estruturou para fazer entregas e escoar hortaliças e frutas da região. “A distribuição é nosso maior problema”, assegura ela. “Compramos um caminhão e estamos finalizando a instalação de refrigeração e ajustes no baú. Em aproximadamente um mês, teremos mais dias de entrega”, diz Spalding, que prevê uma ampliação do número de clientes.
Antes, o veículo era terceirizado. Além do Arturito, são atendidos os restaurantes Mangiare Gastronomia, Jacarandá, Antonietta Cucina, Goa Vegetariano e Chou, bem como o bar Taka Daru. “Como recebo diretamente dos produtores, os orgânicos deixaram de ser caros”, afirma Paola.
A chef, que mantém as próprias caixas plásticas para o transporte, monta seu menu de olho na sazonalidade. “Se sei que terei mandioquinha num período, eu a incluo no cardápio”, explica. Por WhatsApp, recebe semanalmente duas listas com as hortaliças disponíveis e faz a encomenda. Ela também sugere verduras para cultivo e foi responsável por introduzir a couve cavolo nero, típica da Toscana, em Parelheiros.
Entre os agricultores, Shoiti Araki, descendente de japoneses nascido em Parelheiros, ganha elogios de todos os colegas pela qualidade do que cresce em suas terras. “Ele só entrega coisas excelentes”, endossa Paola. Embora conte só com a ajuda da natureza nos seus 3 hectares, arrendados com dinheiro que trouxe do Japão na temporada em que trabalhou como decasségui, ele não falha.
Campeão em itens produzidos — são mais de quarenta, incluindo espinafre, agrião, salsa e ora-pro-nóbis —, Mauri Joaquim da Silva também tem raízes naquele pedaço. Trabalhava com o avô na agricultura convencional, mas foi expulso da terra na crise do fim da década de 90 e virou mecânico. “Não consegui ficar longe da roça”, conta ele, que voltou em 2004. Depois de quatro anos, procurou a Casa da Agricultura Ecológica de Parelheiros, que incentiva a produção de orgânicos, e acertou a mão. Hoje, cultiva 5 hectares e é certificado pela Associação Biodinâmica.
Igualmente dono de 5 hectares, Daniel Petrino dos Santos é outro nativo da região. Seu trabalho com orgânicos ganhou impulso depois que se associou a Jair Medeiro, ex-funcionário da Casa da Agricultura de Parelheiros, que entrou com recursos para que o parceiro ampliasse a produção, que chega a restaurantes e feiras e deve estar também na merenda escolar.
O casal de septuagenários Massue e Masahaki Shirazawa conheceu os orgânicos em 2007 por meio de uma incubadora da USP. Três anos depois, eles já tinham feito a conversão de suas hortaliças para o novo método. Hoje, a colheita diária de vegetais variados, que vão de folhas a ervas, além de legumes como vagem e abobrinha, é absorvida pela Igreja Messiânica Solo Sagrado de Guarapiranga e por duas feiras, uma no Parque Burle Marx e a outra para funcionários e visitantes da Cetesb. “Eu planto saúde”, diz Massue.
Treze dos agricultores de Parelheiros têm uma missão muito especial programada para começar em 14 de março. Pela primeira vez, vão atender a escolas municipais, uma vez que a prefeitura firmou um contrato de um ano com agricultores por meio de uma chamada pública. “É uma alegria muito grande que essa compra tenha sido feita, e esperamos que ao longo dos anos a parceria só aumente”, comemora Spalding. A carga de 56 toneladas, em especial de verduras, deve ser entregue em três meses.
Como não dispõe de um sistema próprio, a Cooperapas está testando a distribuição de uma parceira — a cooperativa de agricultura familiar do Vale do Ribeira, responsável pela entrega de bananas para a prefeitura. Outra iniciativa do município, o Projeto Ligue os Pontos, em fase de implementação, pretende conter a expansão desenfreada de moradias nas áreas de preservação da Zona Sul e ao mesmo tempo fortalecer a agricultura existente na região.
“Dez agrônomos vão construir um plano de adequação ambiental, e o nosso objetivo é que, em até três anos, as famílias agricultoras estejam certificadas como orgânicas ou recebam o selo de produtoras sustentáveis”, afirma o secretário adjunto municipal de Urbanismo e Licenciamento, Marcos Camargo Campagnone, que toca o projeto em conjunto com outras secretarias e órgãos municipais.
Um aporte de 5 milhões de dólares foi feito pela empresa de informações financeiras e notícias Bloomberg em razão de a iniciativa ter sido vencedora do Prêmio Mayors Challenge (desafio dos prefeitos).
Menos grandiosos que em Parelheiros, os pontos verdes da Zona Leste conseguem chamar atenção. Ficam sobretudo nas proximidades do Parque do Carmo e no bairro de São Mateus. A diferença é que boa parte das hortas é protegida por muros, em meio a áreas urbanas ocupadas por residências, botecos, escolas e grandes avenidas. Quando se olha para o alto em um desses enclaves vegetais, é possível enxergar imensas torres de transmissão de energia.
Uma parcela considerável dessas pequenas plantações se encontra em espaços cedidos em comodato por empresas como a Eletropaulo. Em um terreno de 6 000 metros quadrados, a ex-empregada doméstica Terezinha dos Santos trabalha junto do marido, José Nildon de Matos, originalmente gari. Com o auxílio de dois funcionários, o casal planta mais de cinquenta variedades de hortifrútis orgânicos — couve, milho, maracujá, taioba, azedinha, entre outros — e vive só da agricultura.
Ela diz lucrar 5 000 reais por mês com a venda da produção nas (poucas) feiras da região, como a do estacionamento do Parque Ceret, no Tatuapé, e também com as compras feitas pelos moradores da vizinhança que batem à sua porteira. “Aqui eu trabalho de segunda a segunda das 8 da manhã às 8 da noite”, afirma ela. Terezinha é uma das afiliadas da Associação de Agricultores da Zona Leste (AAZL), que une 24 lavradores orgânicos ou em fase de transição, a maioria de São Mateus. “Unidos, é mais fácil conseguir maior apoio da prefeitura e também das organizações”, diz a diretora financeira, Andreia Perez Lopes.
Dependendo do local onde se mora ou trabalha, comprar hortaliças paulistanas não é missão fácil. Um dos raros pontos de venda fixos é o Instituto Chão, na Vila Madalena. Responsável há quase três décadas por feiras como a do Parque da Água Branca, na qual se encontram bananas de Parelheiros, o secretário executivo da Associação de Agricultura Orgânica (AAO), Marcio Stanziani, acredita ser ainda um pouco limitado o incentivo da prefeitura, embora já se tenha dado um passo importante com a merenda escolar. “A verdadeira revolução orgânica virá da demanda do público, que não para de crescer”, aposta.