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“O isolamento dentro do isolamento é de uma angústia sem tamanho”

Guilherme Queiroz, repórter da Vejinha, relata como foram seus dias após o diagnóstico positivo de Covid-19 dele e da mãe

Por Guilherme Queiroz
Atualizado em 19 jun 2020, 07h36 - Publicado em 19 jun 2020, 06h00
Guilherme, 21, e Dênia, 48, tomando sol dentro do “aquário” (Arquivo Pessoal/Veja SP)
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“Fui dormir no dia 27 de maio com uma leve febre, não passava dos 37,5 graus. Eram três horas da madrugada quando, depois de acordar de um pesadelo, notei que a cama estava molhada de suor: o sinal claro de que o corpo lutava contra um inimigo invisível. Ao raiar do dia, dores, principalmente nas articulações do ombro. Engoli um analgésico e relutei em admitir para mim mesmo que talvez estivesse com a temida doença. Tentei começar o home office normalmente. Mal sabia que não seria capaz de ler no computador: o enjoo me atingiu em cheio.

Chegou a hora de admitir que não estava bem: após explicar a situação aos amigos da Vejinha, fui em busca de uma teleconsulta. Acostumada com centenas de pessoas com os mesmos relatos, a médica proferiu o diagnóstico mecanicamente: ‘Provavelmente é corona. Se isole. Fique quieto e atenção se piorar’. O pesadelo do dia 27 virou uma previsão. E nas próximas horas, o vilão da Covid me encurralou: a falta de ar. Arrumar a coberta da cama, ajeitar o travesseiro, se esticar para beber água: ao fim de qualquer mínimo movimento, o cansaço era parecido com o de vinte polichinelos. Tomar banho, então, nossa! As portas sempre destrancadas, com medo do que poderia acontecer pelado no boxe.

Pior do que a avalanche de dores era o medo psicológico: e se eu encostei em uma maçaneta e minha avó, que mora com a gente, tocou ali? E se mais alguém em casa pegar e a culpa for minha?

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E tudo isso sem o diagnóstico confirmado. Na sexta 29, entrei no carro com minha mãe e fomos a um laboratório que faz o teste em drive-thru. Vou dizer a você que não sabia que meu nariz era tão fundo: o cotonete, sem dúvida nenhuma, foi até o cérebro e voltou. Só de escrever me arrepio. Domingo o resultado: positivo. Então foi a vez de toda a família fazer o teste: vó, pai, irmão, irmã e mãe. Enfermeira de UTI de recém-nascidos, Dênia, minha mamãe, estava claramente desesperada pelo filho, tão preocupada que não pensou que ela me acompanharia na quarentena. Confesso que foi um horror e um alívio. O medo por ela ter asma. O alívio, egoísta, pois não precisaria mais ficar sozinho. Veja: o isolamento já é um desafio mental. Agora a quarentena dentro da quarentena é de uma angústia sem tamanho.

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Guilherme Queiroz
Quarentena no quarto: louça lavada para ser higienizada mais uma vez (Arquivo Pessoal/Veja SP)

Percebi que o vírus é um danado com muitas personalidades. Em mim, o enjoo sem dúvida foi o pior. No início, não conseguia ler, assistir a séries nem mesmo ouvir músicas. Com o passar dos dias, o cansaço foi melhorando, e as dores no corpo também, mas o enjoo demorou a parar. Já na minha mãe, a tosse. Ela não conseguia falar por mais de quatro segundos sem ser atacada por uma crise de cofs cofs desesperadora, daquelas que parece que a pessoa vai vomitar.

Deitados juntos na cama boa parte do dia, levantávamos para tomar sol e lavar a louça suja. Nossos copos, pratos e talheres foram marcados com nossas iniciais e, depois das refeições, enxaguados com água e sabão no banheiro, para em seguida ser higienizados mais uma vez no andar de baixo da casa.

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Víamos as pessoas pela grande porta de vidro que divide o quarto dos meus pais de uma área externa. Eu me sentia em um aquário, observado. Depois de um tempo, comecei a fantasiar que estava em um hotel (‘Alô, vó! Estamos com sede, pode pegar água? Estamos com fome, pode levar um biscoito? Pai, acabou o azeite! Alguém pode deixar sal na porta?’).

Guilherme Queiroz
O livro “Gabriela, Cravo e Canela” de Jorge Amado: companhia no isolamento (Arquivo Pessoal/Veja SP)
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Mas o alívio mesmo era que ninguém estava piorando. Pelo contrário. Nos últimos dias, maratonei The Office na Amazon Prime e Space Force na Netflix: Steve Carell foi meu melhor amigo por me fazer rir como nunca em dias. Depois, minha paixão foi Gabriela, no livro de Jorge Amado. Li o primeiro capítulo do romance em voz alta para minha mãe, pausadamente, com eventuais cansaços, mas foi uma baita conquista dos meus pulmões. Mãe e eu vimos Outlander, na Netflix, e Sessão de Terapia, no Globoplay. Fazia tempo que não ficávamos tão ligados. Recuperados após os catorze dias, voltamos para nossa vida dentro do novo normal. Ainda bem: pela primeira vez estava agradecido de manter apenas 1,5 metro de distância das outras pessoas daqui de casa.”

Publicado em VEJA SÃO PAULO de 24 de junho de 2020, edição nº 2692.

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