Na manhã do último dia 11, 142 adolescentes infratores da Fundação Casa se reuniram no Ginásio da Portuguesa, no Canindé, para disputar o 16º campeonato anual de xadrez da instituição. Eram rapazes e garotas de diferentes regiões do estado, pré-selecionados em torneios nas unidades onde cumprem pena. Entre a turma da organização, a aposta era que o troféu iria para a Casa Juquiá, no Brás, o único endereço do sistema — antigamente chamado de Febem — que tem um clube de xadrez formado pelos jovens. O pessoal foi surpreendido. O vencedor, um interno de 18 anos, vinha de uma unidade de alta segurança feita para reincidentes nos delitos, em uma remota cidade do interior chamada Iaras.
Localizada a 260 quilômetros da capital, Iaras é uma espécie de cidade-penitenciária: com apenas 8 000 habitantes, tem duas unidades da Fundação Casa e um presídio para adultos. Em uma dessas unidades, atualmente com 62 adolescentes (a capacidade é para 90), o jovem enxadrista divide com quatro internos uma cela voltada para a quadra de esportes, cercada por um muro de quase 7 metros de altura.
Quando foi internado pela primeira vez, em 2018, tinha 14 anos. Havia sido acusado de envolvimento no assassinato de um jovem de uma cidade próxima, para vingar uma agressão ao irmão mais velho. “Disseram que eu dei a arma para ele (o autor do disparo)”, conta. Ficou detido por quase dois anos, cidade de Lins.
Exatos 46 dias após ser solto, voltou à Fundação Casa. Ao contrário da maioria dos internos, nunca negou o que fez. “Comprei uma briga do meu irmão. O cara tentou sacar a arma, eu saquei primeiro e tirei a vida dele”, diz.
O adolescente aprendeu xadrez em 2018, na unidade de Lins. Passou a praticar todos os dias com outros internos e se destacou em torneios regionais. Tem um estilo de jogo rápido e incisivo: sem vastos conhecimentos teóricos, mostra um instinto afiado para lances de ataque. É capaz de relembrar de memória a partida jogada dias antes, na final do campeonato.
Nas ruas, estudou até o sexto ano do ensino fundamental, que deve concluir em dezembro na Fundação Casa. Tinha facilidade nos conteúdos, mas abandonou a escola após brigar com colegas e professores. “Matemática e inglês são meu forte, quase sempre tiro 10 nas provas”, diz. “Nunca tive envolvimento com assaltos ou tráfico de drogas. Meu problema era em casa. Não tive pai e meu irmão (atualmente preso por tráfico) era ‘do outro lado’ (era do crime). Eu sentia obrigação de ser o homem da casa, de proteger os outros”, conta.
Segundo os funcionários da unidade, o jovem mudou significativamente na atual internação, que dura um ano e dez meses. “No início, ele insistia nas antigas ideias. Hoje, criou maturidade. Entende que não pode resolver as coisas daquela maneira, nem se sacrificar pelo irmão”, afirma a assistente social Daniela Silva, que o acompanhou nas duas passagens. “Acredito que tenha preparo para levar uma vida normal lá fora, se quiser. Agora, se vai querer…”, ela diz, sem concluir a frase. Além de competir no xadrez, ele sonha em estudar administração de empresas, área de atuação do padrasto.
Há cerca de duas décadas, o xadrez é praticado na Fundação Casa como medida de ressocialização. “Teve início após uma parceria com a federação paulista da modalidade, que deu uma formação aos nossos profissionais de educação física”, diz o superintendente pedagógico Carlos Alberto Robles. “É uma ótima ferramenta para a concentração, a tolerância e o equilíbrio”, afirma.
A unidade de mais tradição nos tabuleiros é a Juquiá, do Brás, onde funciona o Rei Destemido Clube de Xadrez, fundado dois anos atrás. O grupo é formado por dez adolescentes, selecionados em torneios internos mensais. “Quando vim para cá, era um revoltado”, diz — de forma cordial e simpática — o interno que atualmente ocupa o posto de presidente do clube, condenado oito meses atrás por um assalto. “Hoje, sou outra pessoa. Consigo me colocar no lugar da vítima. Quero estudar educação física e dar aulas de muay thai”, ele afirma.
À frente da iniciativa está o agente educacional Cícero Tavares (foto), 40, instrutor da modalidade. “Na semana passada, recebi uma ligação que me emocionou. Era um ex-presidente do nosso clube, que voltou à liberdade. Disse que conseguiu um emprego, faz panfletagem nas ruas. E está vencendo torneios de xadrez lá fora”, ele conta. “Todos aqui têm potencial para mudar de vida”, conclui.
Publicado em VEJA São Paulo de 26 de outubro de 2022, edição nº 2812