Pouco antes das 2 da manhã deste domingo (11), a paulistana Grazzi Brasil entrará na ala musical da Vai-Vai no Sambódromo e pegará um microfone de destaque, com o volume mais alto que o dos outros dez integrantes. Ao lado de Gilson da Conceição, o Gilsinho, ela puxará o samba-enredo da agremiação, a maior campeã do Carnaval paulistano. Será a terceira mulher na história dos desfiles da capital a interpretar um tema das grandes escolas.
Antes dela, Bernadete Raimundo puxou a Unidos do Peruche em 1991 e Eliana de Lima se apresentou pela Unidos do Peruche e pela Leandro de Itaquera entre 1980 e 2003. Ou seja, nos últimos quinze anos, nenhuma voz feminina havia soado forte no Anhembi. “É a maior honra nesses dezoito anos de carreira como cantora”, conta a artista, que começou na quadra em 2014.
Dezenas de profissionais passarão pela mesma alegria neste Carnaval. Até então restritas ao papel de enfeite, atraindo closes graças aos microbiquínis, as mulheres conquistaram postos que durante quase um século ficaram reservados aos homens. Hoje, elas ocupam cerca de 30% dos cargos que até a década de 70 eram exclusivamente masculinos. “Em menos de dez anos, elas vão dividir o comando do Carnaval de igual para igual”, diz a carnavalesca Maria Apparecida Urbano, que tem seis livros publicados sobre o assunto.
Atualmente, das mais tradicionais escolas de samba, cinco são presididas por mulheres, algo inédito na história. São elas Angelina Basilio (Rosas de Ouro), Luciana Silva (Tom Maior), Rosemeire Marcondes (Lavapés, a mais antiga em atividade na cidade), Sheila Natali (Pérola Negra) e Solange Bichara (Mocidade Alegre).
Além da administração das agremiações, verdadeiras empresas que movimentam em média 5 milhões de reais por ano, as mulheres entram no “coração” do samba: a música. Em 2015, foi criado o primeiro grupo só de compositoras, o Samba das Meninas. Em 2017, elas alcançaram a semifinal na escolha da letra da Rosas de Ouro. “Enquanto trabalhamos, namorados e maridos dão a maior força em casa e ajudam a organizar a torcida”, diz Juju Rosa, uma das integrantes.
Nos blocos de rua, também já se percebe o novo estilo. Inclusive na bateria, ainda que de forma tímida. Dos cinquenta grandes cordões da cidade, apenas em um deles a percussão é comandada por uma musicista. Há três anos, Silvanny Sivuca ganhou o apito para reger os mais de 100 batuqueiros do Me Lembra que Eu Vou, que deverá arrastar uma multidão de mais de 50 000 pessoas no Itaim nesta segunda (12). “No grupo, meu comando sempre foi respeitado”, diz Silvanny.
Ela também coordena o tamborim no bloco Bangalafumenga, um dos maiores da cidade. Lá, a turma da saia forma 60% dos 250 músicos. “Até o ano passado, estampávamos ‘batuqueiro’ na camiseta dos membros, mas agora virou ‘batuqueira’”, diz Flavia Doria, sócia-fundadora da Oficina de Alegria, que produz o desfile do Banga aqui. No desfile no último domingo (4), no Itaim, esse novo figurino não provocou reclamações entre os rapazes.
Há ainda blocos exclusivamente femininos. O pioneiro deles é o Ilú Obá De Min, que na língua iorubá significa “mãos femininas que tocam os tambores para o rei Xangô”. No grupo, criado em 2004, as mulheres tocam percussão e os homens dançam, representando os orixás. A apresentação ocorre nesta sexta (9), na República, e contará com dez bailarinos para 348 percussionistas. “Temos uma causa, que é valorizar as negras”, diz a socióloga Beth Beli, uma das fundadoras.
Depois do Ilú, vieram outros, como Pagu (que sai na terça 13, no centro) e Siga Bem Caminhoneira (de lésbicas, no domingo 18, no centro). De todos, o Ritaleena tornou-se o maior e o mais famoso. O cordão que desfila no sábado (10), no Ipiranga, nasceu entre trinta amigas da faculdade de música da universidade Santa Marcelina. Por ideologia, quiseram homenagear uma figura feminina paulistana e, assim, elegeram a cantora Rita Lee.
O bloco recebe mais de 20 000 foliões de qualquer gênero, mas mantém as meninas no comando. Elas predominam até na corda: aquela função de segurar o cabo que isola o caminhão e conduzir a multidão para a frente. “Muitas até usam maiô, e tiramos o assédio de letra”, diz Alessa Camarinha, uma das fundadoras.
O assédio, aliás, e o machismo ainda são o maior desafio encarado pelas novas mestras do samba. A intérprete da Vai-Vai, por exemplo, passou por conflitos nos bastidores. Segundo componentes, o antigo puxador, Wander Pires, reclamava da presença de Grazzi no coro. Caiu no YouTube um vídeo em que ele interrompe o ensaio e dá uma bronca na colega: “Sou eu que canto aqui, pô!”.
O cantor diz que tudo não passa de um mal-entendido. “O ensaio técnico é tenso, depois me desculpei com ela”, afirma. Neste ano, Pires migrou para a Vila Maria, e a cantora levou a promoção. Silvanny, a mestra de bateria, volta e meia enfrenta desconfiança quando se apresenta em eventos. No início deste mês, um produtor se espantou ao conhecê-la. “Ele perguntou: ‘Você, com essa mãozinha aí, vai tocar um surdo?’.” Silvanny respondeu com um solo, e o contratante pediu desculpa.
O curioso é que foram justamente as mulheres que deram origem ao Carnaval paulistano, nas primeiras décadas do século XX. A Lavapés, sediada no Cambuci, surgiu graças a uma espécie de “síndica do bairro”. Em 1937, Deolinda Madre, conhecida como Madrinha Nice, encantou-se com o Carnaval carioca, chamou os batuqueiros da vizinhança e organizou um desfile, um dos pioneiros da capital.
Tornou-se a primeira presidente de agremiação do país. “Ao longo desses anos, cada vez mais a turma do samba percebe que as mulheres também podem ser boas administradoras, excelentes musicistas e profissionais responsáveis”, diz a carnavalesca Maria Apparecida. “Na verdade, esse processo de igualdade demonstra que talento e competência não têm gênero”, completa.