Nascido numa favela em Guarulhos, trabalho com meu time para que a pobreza se transforme em peça de museu. E queremos fazer isso antes de o empresário Elon Musk pousar seu foguete em Marte.
Como parte do nosso projeto de Redesenho de Favela, em São José do Rio Preto, onde vamos construir a primeira comunidade inteligente e autossustentável do Brasil, embarquei para Medellín, numa jornada de aprendizagem com os colombianos.
A expedição foi liderada por Murilo Cavalcanti, secretário de Segurança Urbana do Recife, uma pessoa que cuida de bibliotecas públicas, decidiu não armar a Guarda Civil e criou o Centro Comunitário da Paz (Compaz), um dos principais aparelhos públicos do Brasil, tido como uma fábrica de cidadania.
Houve um tempo em que Medellín era a face assustadora de uma distopia social. Os males se acumulavam: Pablo Escobar, corrupção crônica, Cartel de Medellín, Farc, assassinatos, sequestros, medo, guerra civil, toque de recolher às 18 horas. Foi a cidade mais violenta do mundo, com 382 assassinatos para cada 100 000 habitantes. O inferno parecia não ter fim.
Mas teve. Os colombianos fizeram uma revolução social. Meus amigos Germano Guimarães (fundador e CEO do Instituto Tellus) e Rafael Hawilla (empresário e patrocinador da viagem) e eu vimos o melhor da política pública a serviço dos mais pobres.
A Comuna 13 — o centro nervoso do terror, a região mais violenta da cidade — tornou-se um laboratório a céu aberto de políticas públicas e inovação social. Uma integração de tecnologias que eles chamam de “acupuntura social”. Moradias comunitárias, casa de Justiça, saneamento básico, água potável, biblioteca-parque, quadra poliesportiva, calçada alargada, escada rolante e o metrocable — o sistema de teleféricos conectado a um eficiente metrô.
Em outras áreas, houve a revitalização de espaços públicos. Avenidas foram devolvidas a pedestres, construíram-se galerias de arte e museus. Colocaram de pé o Ruta N, um centro de inovação e negócios focado em melhorar a qualidade de vida do cidadão por meio da ciência e da tecnologia.
Por causa da integração de políticas e tecnologias sociais, é possível dizer que os pobres de Medellín são menos pobres que os demais pobres da América Latina. A bomba-relógio foi desarmada. E Medellín, merecidamente, foi eleita a cidade mais inovadora do mundo, vencendo Nova York e Tel Aviv, em competição realizada pelo Instituto Urband Land. A mais impressionante reviravolta urbana dos tempos modernos.
A pergunta central é: como isso aconteceu?
Murilo Cavalcanti nos apresentou ao ex-secretário de Desenvolvimento Social de Medellín Jorge Melguizo. Andando pelas ruas, em horas de aula, ele nos mostrou o caminho das pedras, onde se destacam seis pilares.
1 — Acordo social. Uma sociedade pode estar em desacordo na solução, mas não na identificação do problema. Medellín produziu um pacto social sobre o que era crucial: vencer a violência. Se não tivessem nitidez sobre o problema, jamais chegariam à solução.
2 — Pertencimento. A revolução de Medellín não tem dono. Não foram os gringos. Muito menos um grupo iluminado. A transformação teve o protagonismo de todos: governo, comunidade, iniciativa privada, academia, ONGs etc. Um empresário disse que o melhor investimento da iniciativa privada foi em políticas públicas de educação.
3 — Convivência. O contrário de insegurança não é segurança — é convivência. Se a sociedade não convive nos espaços públicos, esse território não é seguro. Não é o Exército na rua que promove sensação de segurança.
4 — Cidadania. Os arquitetos da transformação não construíram prédios. Construíram cidadania. Mais do que erguer uma cidade, ergueram uma sociedade. Todo espaço público precisa cumprir um papel social.
5 — Dignidade. A cidade deixou de entregar coisa ruim para pobre. A mesma qualidade da calçada alargada do centro de Medellín está presente nas comunas, onde não se sente o cheiro de esgoto, mas o aroma do pão doce. Lá, nenhum indivíduo vale mais que outro. O privilégio de poucos cedeu lugar ao direito de todos.
6 — Longo prazo. Não há fast-food social. Quase nada realmente grande foi feito a toque de caixa. Medellín não mudou da noite para o dia. Foram vinte anos de trabalho. Como o processo é longo, há que começar logo.
Curiosamente, aprendemos com os colombianos o que eles haviam aprendido com brasileiros, ao buscar referência no transporte de Curitiba e no Favela Bairro no Rio de Janeiro. Hoje o Museu da Memória da Violência, que os colombianos construíram, é um lembrete do passado recente. Não foi um processo simples, mas certamente foi menos complexo do que uma viagem a Marte. Diferentemente do projeto espetaculoso de exploração espacial, a transformação social está ao alcance de nossas mãos.
Edu Lyra é empreendedor social e fundador da Gerando Falcões.
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Publicado em VEJA São Paulo de 13 de janeiro de 2021, edição nº 2720