A crise econômica provocada pelo coronavírus desde março atingiu em cheio um segmento de mercado informal que é a cara da periferia: mulheres que recebem crianças na própria casa, enquanto os pais vão trabalhar. Por causa do desemprego crescente, as chamadas mães crecheiras viram de uma hora para a outra seu negócio doméstico minguar. “Eu cuidava de sessenta crianças por dia, mas hoje estou com apenas duas”, afirma Maria Aparecida dos Santos, 40, moradora de uma casa de seis cômodos em Paraisópolis. “Algumas mães deixavam as crianças por uma ou duas horas, a partir das 5 horas da manhã, até a perua passar para levá-las à escola ou creche.” Os valores de seus trabalhos variam de 100 a 350 reais por mês, dependendo do tempo de estada dos menores. O expediente ali terminava às 20 horas, de segunda a sábado. Sem clientela, Cidinha, como é conhecida, passou a vender marmitas para equilibrar o orçamento da família, composta de quatro filhos e o marido, que está empregado.
As mães crecheiras atendem a basicamente dois tipos de público: crianças sem vagas em creches que não podem ficar sozinhas em casa durante o dia e as que estão matriculadas, mas cujos pais não conseguem chegar a tempo de buscá-las nas instituições de ensino. Nesse caso, é comum as peruas “descarregarem” cinco, seis, dez crianças em uma mesma casa de mãe crecheira após o expediente regular de ensino.
Ainda em Paraisópolis, a falta de demanda fez a dona de casa Cláudia di Silvério, 48, começar a fabricar pães e bolos artesanais para suprir a renda antes obtida com o serviço de cuidados diários para nove crianças. Cada uma lhe rendia 150 reais por mês, valor suficiente para pagar o aluguel, de 600 reais, e comprar comida para a família e os “clientes”. Na última segunda-feira (20), ela olhava dois meninos e duas meninas, mas três deles, de uma mesma família, estavam de mudança para o Piauí. Sem muito espaço em casa (são apenas três cômodos), ela usa parte da viela em frente para entreter a criançada. “O que tem ajudado são as marmitas que a União de Moradores distribui todos os dias”, afirma Cláudia, se referindo aos 10 000 pratos que a associação local entrega na região, de 100 000 moradores.
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A vinte quilômetros dali, em Heliópolis, a dura rotina das cuidadoras informais também foi impactada pela crise. Mãe de quatro filhos e avó de dez netos, Alexandrina de Lima, 44, viu a trupe cair de nove para quatro crianças. Cada menor custa 250 reais mensais para um dia inteiro de cuidados. Ali, no apertado sobrado de dois andares e apenas dois cômodos, a cozinha no térreo se transforma em sala de 6 metros quadrados para os menores. A residência não conta com nenhum aparelho de televisão. “A escada é muito perigosa e eu não deixo ninguém subir”, diz a dona da residência onde moram quatro pessoas (dois filhos e o marido). Ex-cliente de Alexandrina, a desempregada Eridan Pereira, 34, mãe de três filhos (1, 2 e 10 anos) trabalhava como lavadora de pratos em um restaurante na Avenida Faria Lima. Demitida em março, vive do salário do marido e das doações de cestas básicas e fraldas. “Só vou poder procurar emprego quando as creches voltarem a funcionar, pois não tenho condições de pagar alguém para olhar minhas meninas menores”, lamenta.
Não é só na periferia que as mães crecheiras atuam. No Jardim São Paulo, na Zona Norte, a pedagoga Wilma Ferreira, 57, viu cair de trinta para doze o número de crianças que recebe. Ela até chegou a ter uma escolinha regular na região, mas diz que o excesso de exigências legais a fez partir para a informalidade. “Foi a Wilma fechar o berçário em 2015 e a gente migrar automaticamente para a casa dela”, afirma a advogada Mirna Menacho, 45, mãe de uma menina de 12 anos e um menino de 9. “Ela que alfabetizou a mais velha, sem falar nos ensinamentos e no carinho que dá a todos.”
Na casa da tia Wilma, como é conhecida pela criançada, celular não entra. “Temos quebra-cabeça, jogos de tabuleiro, xadrez. As nossas meninas de 12 anos brincam de boneca e casinha. Aqui criança tem de ser criança”, diz Wilma. Mas era justamente de seu telefone que a pedagoga não despregava o olho na última segunda (20), enquanto fazia almoço, composto de arroz, feijão, salada e frango, e conversava com a Vejinha. Seu filho de 21 anos possui um tipo raro de anemia e precisa de transfusões de sangue recorrentes. “Passei a madrugada com ele no Hospital das Clínicas e voltei de manhã, sem dormir, para cuidar das crianças. Minha vida tem sido assim nas duas últimas décadas.” Além da preocupação com a saúde do rapaz, cujo pai morreu, outra questão tem tirado o sono de Wilma. “Com a queda da receita, pensei em devolver a casa (alugada por 2 600 reais mensais) e procurar uma mais barata, o que prejudicaria muitos pais.” A saída encontrada partiu deles. “Eles fizeram uma vaquinha e consegui pagar este mês, mas não sei como serão os outros.” Enquanto isso, como em qualquer coração de mãe, sempre cabe mais um na casa dela. Das doze crianças, duas não pagam a mensalidade, de 400 reais por meio período. “Sem falar nos descontos que damos para quem não pode pagar tudo.” Para complementar a renda, Wilma costura máscaras e aventais nos fins de semana.
9 670 é o número de crianças na lista de espera por creche
Antes da pandemia, São Paulo possuía 340 000 matriculados em Centros de Educação Infantil (CEI), como são chamadas as creches municipais. Em janeiro passado, a lista de espera nessas redes era de 9 670 crianças. Embora a figura da mãe crecheira não seja nova, não há nenhum tipo de regulamentação ou reconhecimento legal do trabalho delas. Em Paraisópolis, estima-se que existam 1 000 mulheres que abrem suas casas para atender os filhos dos outros. Em Portugal, essas mulheres recebem treinamentos e possuem respaldo de ministérios como da Saúde, Educação e Cultura.
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Publicado em VEJA SÃO PAULO de 29 de julho de 2020, edição nº 2697.