Muitos dos que atravessaram a adolescência na segunda metade da década de 80 foram marcados por uma talentosa geração de cartunistas surgida a partir de revistas e fanzines alternativos, mais tarde cooptada pelos jornais diários. Um trio sobressaiu no período, unido sob a alcunha Los 3 Amigos: Angeli, Glauco (1957-2010) e Laerte. Mais cultuado do grupo, o paulistano Laerte Coutinho criou, ao longo da carreira, uma série de personagens que chamavam atenção pelo modo inusitado de viver o cotidiano. Entre eles estão, por exemplo, os Piratas do Tietê, saqueadores que navegam pelo rio imundo, o atrapalhado herói Overman, um casal de gatos ninfomaníacos e até um Deus envolvido com problemas bastante humanos. Agora, o cartunista de 59 anos lança pela Quadrinhos na Cia., selo de HQs da editora Companhia das Letras, um novo trabalho, o folhetim gráfico ‘Muchacha’ (96 páginas, 29,90 reais), previsto para chegar às livrarias na primeira semana de setembro.
Formado por tiras publicadas aos sábados no jornal ‘Folha de S. Paulo’, ‘Muchacha’ é um mergulho na cultura dos anos 50, sobretudo a das então imberbes atrações de aventura da televisão. O enredo se passa nos bastidores do programa do carismático Capitão Tigre e abarca ainda o jornalismo sensacionalista da época, brinca com a tensão política provocada pela Guerra Fria e revela uma misteriosa cantora, a Muchacha do título. Devido à pegada folhetinesca da obra, marcam presença romance, vinganças, sequestros e traições. Trata-se também de uma maneira de o autor passear pelas lembranças dos tempos de menino, expediente iniciado no trabalho anterior, ‘Laertevisão — Coisas que Não Esqueci’. “Muita coisa veio da memória de programas como ‘Falcão Negro’, até porque os jovens não conhecem a trajetória da TV Tupi nem das radionovelas”, diz.
Foi incluída como epílogo da edição uma trama complementar desenhada pelo filho de Laerte, Rafael Coutinho, promessa dos quadrinhos. Ao lado do escritor gaúcho Daniel Galera, Rafael publicou recentemente o romance gráfico ‘Cachalote’, elogiado pela crítica. “Enlouqueci com o livro. Rafa desenha melhor do que eu”, comenta o pai coruja. “Ele não consegue ser imparcial, não teria futuro nenhum como crítico”, brinca o filho. “De todo modo, sempre mostro tudo para meu pai primeiro.”
‘Muchacha’ traz o cartunista de volta a roteiros mais convencionais e lineares. Para desgosto de vários fãs, Laerte transformou radicalmente o estilo das tiras diárias há alguns anos. Personagens queridos foram abandonados em favor de uma abordagem filosófica nem sempre — ou quase nunca — baseada no humor. Um dos motivos da virada foi a morte do filho Diogo em um acidente de carro, em 2005. Aos poucos, porém, parte do público habituou-se à nova fase, experimental, mas nem por isso menos brilhante. “Eu me sinto navegando solto ao desenhar, sem bússola, posso ir para qualquer direção”, afirma. “Minha intenção não é mais fazer piada, e sim evocar sensações, ideias. Acho saudável dar um choque no leitor, estimular certa confusão.” Embora no momento dê assessoria ao diretor Otto Guerra para a realização de um longa-metragem de animação, Laerte diz que está com poucos projetos para o futuro. Continua arrasado com o brutal assassinato do velho amigo Glauco, morto em março. “Não sara nunca.”