Jogar os dados, avançar uma casa, mover as peças… Em plena era dos games virtuais, os jogos de tabuleiro voltaram a fazer sucesso no Brasil — o número de lançamentos saltou de 71 para 308 entre 2015 e 2020, segundo o portal especializado Ludopedia.
Em 2011, Guilherme Cianfarani, 43, morador da Bela Vista, deixou um emprego no setor de turismo para desenvolver passatempos do tipo. “Eu gostava de jogar e comecei a criá-los por lazer, mesmo. Adaptava as mecânicas dos clássicos, lapidava a ideia… Quando percebia, havia bolado algo novo”, ele conta.
As invenções, porém, tinham uma característica: elas se inspiravam em temas políticos. O primeiro jogo criado por Guilherme, lançado em 2013, chamava-se “Brasil — Um país de tolos”, referência não tão sutil ao slogan dos governos de Lula da época (“Brasil — Um país de todos”). Era baseado em cartas que traziam frases de personalidades da República, cada uma com diferentes “poderes” na disputa.
Animado, Guilherme passou a desenvolver e pesquisar jogos ligados à política. Em 2021, lançou no Brasil uma versão do francês “Kapital: quem ganhará a luta de classes?”, com as editoras Boitempo e Autonomia Literária. Nele, os participantes são divididos em dois estratos sociais: o dominante (que precisa manter os privilégios) e os dominados (que buscam subverter a relação). Desde o lançamento, vendeu mais de 2 000 unidades.
Guilherme, porém, sentia falta de um jogo dedicado à cena política brasileira. “Qualquer pessoa poderia criar jogos de zumbis ou de ficção científica, mas eu me interesso mais pelas questões do país”, diz.
No final de 2022, ele lançou o “Polarizando” (Autonomia Literária, 350 reais), uma disputa na qual os participantes são divididos em quatro espectros: socialistas (considerados como extrema esquerda), lulistas (centro-esquerda), lavajatistas (centro-direita) e bolsonaristas (extrema direita). O objetivo é criar uma “narrativa” que conquiste o apoio popular. “Nenhum lado é favorito. Minha preocupação foi evitar que o jogador se sinta manipulado ou levado para um espectro. Tentei não ser panfletário”, diz.
Mesmo assim, Guilherme não escapou das polêmicas. “Houve perfis de redes sociais da esquerda que criticaram o jogo porque tem uma carta da Marielle Franco, o que consideraram um desrespeito”, ele conta. “A ironia é que uma das ‘ações’ dos jogadores da esquerda na disputa é justamente ‘cancelar’ (gerar uma onda de críticas na internet)”, afirma.
“A partida pode ser legal para todos. Joguei com um amigo que precisou ser ‘bolsonarista’ — cujas ações, entre outras, são matar e dar um golpe de Estado. Mesmo sem concordar com essas ideias, ele incorporou o personagem e se divertiu”, diz o criador.
O interesse pelos tabuleiros se reflete nas ruas da cidade. Bares tradicionais de jogos, como a Ludus Luderia, no Centro, com mais de 1 500 opções de board games, relatam um aumento de público após a pandemia. Ali os dias mais movimentados são os sábados, quando a casa recebe em média 230 pessoas, mas recomenda-se aos interessados fazer reservas em qualquer data.
Publicado em VEJA São Paulo de 17 de novembro de 2023, edição nº 2868