Um barraco feito de tapumes tem sua entrada aberta para a rua. Dentro dele, uma mulher e dois rapazes compartilham um cachimbo de crack sentados em um colchão. Mais adiante, um carroceiro despeja restos de tábuas e de caixas de papelão para outro viciado que está terminando de montar um lugar para se abrigar em plena calçada. Muitas das moradias têm sacos plásticos como teto. Outras são equipadas com lâmpadas, forno de micro-ondas, armários e cômodas. Algumas são usadas por meninas viciadas para se prostituírem. Assim, vai tomando forma a favela que já tem cerca de 100 barracos e se desenha em “L” entre a Alameda Dino Bueno e a Rua Helvétia, levando a um patamar ainda mais escabroso a Cracolândia, absurdo humanitário e urbanístico que ocupa a região da Luz desde o início da década de 90. Há anos, portanto, governos municipais, estaduais e federais de partidos políticos diversos anunciaram as mais diferentes medidas para lidar com a questão, e acumularam fracasso sobre fracasso, até culminar nesse monumento da incompetência suprapartidária batizado de “favela do crack”, revelado pelo jornal Folha de S.Paulo na última semana. A notícia, porém, não é novidade para os moradores da região, para a Polícia Militar nem para a Guarda Civil Metropolitana, que fazem rondas permanentes no local, situado a poucos passos da Praça Júlio Prestes e da Sala São Paulo.
As moradias erguidas pelos viciados tornaram ainda mais infernal a vida de quem reside ali perto e já estava acostumado a ruas praticamente sitiadas quando começa a anoitecer: favoreceram o agravamento do mau cheiro e do acúmulo de lixo e excrementos. “Desvio de ratos para chegar ao meu prédio”, diz o professor de inglês Marcelo Dalpino, que comprou um apartamento na Rua Duque de Caxias em 2012 acreditando nas promessas de melhorias do pedaço. A insegurança, dizem os vizinhos, também cresceu. Protegidos nos “mocós”, os viciados usam facas — roubadas de feirantes — para cometer delitos. Ademilton Oliveira, motorista particular e morador da região, viu o estacionamento no qual costuma deixar seu carro ser cercado pelos barracos. Acabou sendo as- saltado ao retirar o veículo. “Três rapazes me jogaram no chão e roubaram o GPS e o celular”, conta ele, mostrando cicatrizes nas pernas e nos braços adquiridas no espancamento. “Eu me sinto como se estivesse preso dentro de casa, com medo de entrar e sair.” Oliveira vive no Edifício Miri, na Praça Júlio Prestes, e vê da janela, bem de perto, a multiplicação dos casebres. Seu prédio tem sofrido com falta constante de energia elétrica ao longo dos últimos meses. Os viciados abrem a tampa do bueiro para retirar a fiação de luz e de telefone. “Há idosos e cadeirantes que não conseguiam sair do apartamento porque os elevadores não funcionavam”, acrescenta o zelador Arlindo Schmidt. “Mas, olhando para os barracos deles, percebemos que havia luz.” Para evitar novos apagões forçados, os condôminos pediram à Eletropaulo que concretasse o buraco.
A Praça Júlio Prestes — cujo projeto arquitetônico que engloba a estação de mesmo nome foi premiado com medalha de ouro no III Congresso Pan-Americano de Arquitetos, em 1927 — é um banheiro a céu aberto. “Quando chove, piso em uma lama diferente, resultado do emporcalhamento da rua”, conta Ana Lúcia Marques, dona de um apartamento do 4º andar de frente para a praça. No calor, ela usa um antídoto para dispersar o fedor que entra em casa: dilui desinfetante em água dentro de uma bacia, liga o ventilador e faz o ambiente recender a produto de limpeza. O sonho dela é sair dali. “O prefeito Fernando Haddad visitou o nosso prédio no fim de outubro”, lembra Ana. “Ele viu o nascimento da favela e cruzou os braços. Estou revoltada.” No dia em que visitou a rua de surpresa, Haddad presenciou um viciado roubando o celular de uma pessoa. “Ele viu o que eu vejo todo santo dia.” A administração municipal está reunindo uma série de secretários para decidir o que fazer.
Em outubro, chegou à Praça Júlio Prestes um ônibus que tem na lataria a frase-título do projeto “Crack, é possível vencer”, do governo federal, que doou o veículo, feito ao custo de 1,2 milhão e visto como elefante branco. Ele tem o objetivo de funcionar como base móvel para observação da área. Suas duas câmeras, porém, ainda não funcionam. E o ar-condicionado está quebrado, o que tem causado queixa dos homens da GCM que atuam ali. Os guardas contam que são orientados a impedir que os barracos sejam montados (o que, como se vê, não tem dado certo). “Se eles estão erguidos, não temos autorização para desman chá-los”, diz um policial, que relata sofrer ataques dos habitantes do lugar, com pedras de mosaico português soltas das calçadas. Entre junho e outubro deste ano, a equipe atendeu a 64 ocorrências, que variaram de pequenos furtos e roubos até um homicídio.
“As aglomerações voltaram a crescer tão logo a Polícia Militar deixou de dispersar os usuários”, observa Eliseu Dias, coordenador da Missão Belém da Igreja Católica, que faz trabalho assistencial na região. A PM afirma que deixou essas ações de lado enquanto repensa sua estratégia para a região. Também está congelado o projeto urbanístico da área, uma novela que se arrasta desde 2005. Na época, a gestão do tucano José Serra revelou que transformaria o local em um bairro chamado de “Nova Luz”. As discussões sobre como seria o projeto levaram anos e consumiram 14 milhões de reais dos cofres públicos, até que, em 2010, no governo de Gilberto Kassab, do PSD, chegou-se a um projeto de revitalização da área. A rodoviária desativada na região foi demolida para que o terreno pudesse abrigar um centro cultural. Os alambrados que protegem o local escoram hoje parte da favela que nasce por ali. O plano foi muito criticado por urbanistas e pela oposição petista, devido a uma série de razões, como depender demais da iniciativa privada. Acabou descartado quando Haddad tomou posse, mas até hoje nenhuma outra solução foi apresentada. Tudo segue em fase de “debates”.
A questão crucial na área, de saúde pública, também tem sido centro de um festival de enxugamento de gelo. Ainda que tratar a dependência em crack seja algo especialmente desafiador, chama atenção a falta de diretrizes sólidas para lidar com o problema. No início de 2009, a Polícia Militar e as secretarias municipais de Saúde e Assistência Social uniram forças na Operação Integrada Centro Legal, que previa a presença ostensiva de homens fardados para possibilitar a entrada de equipes de limpeza e de agentes de saúde e desmobilizar o tráfico. No início de 2012, as ações se intensificaram, resultando em cenas como PMs atirando com balas de borracha contra os viciados. Só no ano passado, foram apreendidas cerca de 6 toneladas da droga. Desde março deste ano, a iniciativa deixou de ser aplicada. Em julho, o governo estadual lançou o Programa Recomeço, em que paga 1 350 reais à clínica particular que tratar um viciado. Até o momento, 1 800 pacientes passaram por ele. Enquanto isso, a Cracolândia permanece mais Cracolândia do que nunca.
Tempo perdido
Algumas das tentativas implantadas nos últimos anos
› Crack, é possível vencer
Lançado em: abril. Responsáveis: governos federal e municipal. O que é: um ônibus que serviria de base móvel para monitorar usuários de drogas custou 1,2 milhão, mas suas câmeras ainda não funcionam
› Projeto Nova Luz
Lançado em: 2005. Responsável: governo municipal. O que é: previa a criação de um polo comercial e de serviços para estimular a instalação de empresas. Pronto em 2010, foi muito criticado. A gestão Haddad abandonou a ideia, mas ainda não a substituiu por outra
› Operação Integrada Centro Legal
Lançado em: 2009. Responsáveis: governos municipal e estadual. O que é: nessa parceria, a Polícia Militar dispersava os usuários, enquanto agentes atendiam os viciados. Não é aplicada desde 17 de março. De acordo com a PM, neste momento discute-se uma nova forma de abordagem aos dependentes
› Internação Compulsória
Lançado em: janeiro. Responsável: governo estadual. O que é: a medida se baseava na internação a pedido da família ou por iniciativa de policiais. Polêmica, é usada como exceção
› Programa Recomeço
Lançado em: julho. Responsável: governo estadual. O que é: o repasse de 1 350 reais por usuário para custear o tratamento em clínicas privadas. Atendeu até agora 1 800 pessoas.