Em 1950, o ministro das Relações Exteriores do Líbano, Philippe Takla, em visita à Argentina, impressionou-se com o poder de um casal em mobilizar multidões. Nos dias em que foi ciceroneado pelo então presidente Juan Domingo Perón e pela primeira-dama Evita Perón, também não ficou imune à devoção popular em relação aos dois e à cumplicidade que os unia. De volta para casa, com um álbum repleto de fotografias na bagagem, Takla enquadrou uma imagem de Evita e a colocou na parede. Curioso, Jorge, filho caçula do diplomata, cresceu vendo o retrato daquela mulher, um tanto pálida, na sala de estar e, quando perguntava ao pai de quem se tratava, ouvia simplesmente o nome “Evita” em tom de exclamação. “Eu não compreendia por que uma mulher que nem era presidente podia ser tão famosa”, conta o hoje produtor e diretor de teatro Jorge Takla, de 59 anos.
María Eva Duarte (1919-1952), nome de solteira de Evita, deixou o povoado onde nasceu para trabalhar como vedete e atriz de radionovelas em Buenos Aires aos 15 anos. Em 1944, conheceu o então vice-presidente Juan Perón e, depois de amante, tornou-se sua segunda mulher, exercendo influência também na carreira política dele. Figura demagógica e carismática indispensável nos comícios e reuniões fechadas da Casa Rosada, sede do governo argentino, Evita ajudou a conquistar votos que o elegeram em 1946. Ao morrer, vítima de câncer no útero, aos 33 anos, era chamada de “mãe dos pobres”. Jorge Takla só entendeu as razões que levaram os pais a também se encantar com aquela mulher em 1978, ao assistir ao musical “Evita”, de Tim Rice e Andrew Lloyd Webber, em Londres. “Ela morreu muito jovem, carregando o sonho de todas aquelas pessoas oprimidas a quem servia de exemplo”, diz.
Mais de três décadas depois, Takla estreia no sábado (26) sua versão para o musical na tentativa de provar que o mito resiste ao tempo, como já foi verificado no filme protagonizado pela cantora Madonna em 1996. Tendo à frente do elenco os atores Paula Capovilla (no papel-título), Daniel Boaventura (Perón) e Fred Silveira (como Che Guevara, o narrador da trama), a montagem chega ao Teatro Alfa orçada em 4 milhões de reais. No palco estão 45 atores, vinte músicos, 350 figurinos e projeções de vídeo que dão a dimensão do contexto da época. O musical foi produzido pela primeira vez no Brasil em 1983, com a cantora Cláudia como protagonista.
Uma das maiores preocupações do diretor ao contar essa história, no entanto, passou pela exatidão das informações. O espetáculo foi criado pela dupla inglesa Rice e Webber em 1976, uma época em que, devido aos regimes ditatoriais, qualquer tentativa de vasculhar o passado era dificultada. Desde 2007, quando comprou os direitos autorais da obra, Takla debruçou-se sobre livros estrangeiros, além de biografias da dupla lançadas pelo escritor Tomás Eloy Martínez e pelo pesquisador Juan Pablo Queiroz. Muitas vezes romanceadas, as versões para os fatos nem sempre batiam. Takla começou as negociações para ter acesso ao acervo do Arquivo General de Buenos Aires. Ao lado dos documentaristas Otavio Juliano e Luciana Ferraz, ele passou por duas semanas mais de dez horas diárias debruçado sobre documentos originais, programas, jornais e imagens da época. Trouxe consigo, depois de outras duas idas à Argentina, três horas de filmagens e 1.000 fotografias. “Luciana só percebeu o impacto que Evita teve sobre o povo quando viu as cenas do enterro”, conta o diretor e produtor.
Foram justamente esses retratos os maiores aliados dos protagonistas. O ator Daniel Boaventura captou as expressões de Juan Perón com base nas imagens. “Queria entender melhor aquele sorriso eterno que Perón trazia no rosto, a postura, e, a partir disso, construir um gestual natural, que não ficasse forçado”, diz ele. Paula Capovilla recebeu mais de três horas de DVDs e conversou com psicólogos e argentinos residentes no Brasil para ter a compreensão da personalidade da personagem. “Percebi que Evita era transparente ao falar com as pessoas e investi muito na força de seus gestos, tentando passar o maior número de sensações através deles”, afirma Paula. Na pele do narrador Ernesto Che Guevara, o ator Fred Silveira representa no palco o contraponto ao casal Perón. Historicamente, o guerrilheiro argentino nunca conheceu Evita, e, para melhor se embasar, Silveira foi direto à fonte. Em Buenos Aires, o ator visitou museus, percorreu o Cemitério da Recoleta, onde fica o túmulo de Evita, e colheu opiniões bastante contraditórias sobre o casal nas ruas. “É uma relação de ame ou odeie, mas voltei com a sensação de que a Argentina ainda procura uma nova mulher, com uma força similar à dela”, completa Silveira.