A onze meses de chegar aos 80 anos, o médico e escritor Drauzio Varella acaba de lançar mais um livro, se prepara para correr sua próxima maratona (Londres, em outubro), continua estudando e não estabelece prazos para aposentadoria (apesar de ter fechado seu consultório particular), mas algo o inquieta: haverá um sucessor seu no singular e solitário trabalho voluntário que faz nas cadeias paulistanas há três décadas?
Desde que adentrou pela primeira vez os portões da antiga Casa de Detenção do Carandiru, na Zona Norte, em 1989, apenas duas pessoas o procuraram para ajudá-lo nos atendimentos aos presos. “O primeiro foi o auxiliar de enfermagem Paulo Preto. A gente atendia e examinava tanta gente que parecia um clima de guerra. Eu examinava e ditava para ele escrever a receita. Eu assinava e vinha o próximo. Era uma loucura. O Paulo foi meu grande amigo. Morreu muito cedo, infelizmente.” O segundo foi o médico Antonio Amaro, da Maternidade Santa Joana. “Ele me procurou e falou que queria ajudar. Foram cinco anos de auxílio. Toda semana, disciplinadamente, ele estava lá. Mas foram só eles. Mais ninguém se interessou.”
Se porventura alguém se interessar pelo voluntariado carcerário, Drauzio, que dá expediente uma vez por semana no Centro de Detenção Provisória do Belém, na Zona Leste, afirma logo de cara que as situações ali encontradas não serão nada fáceis. “Eu atendo entre trinta e quarenta pessoas por dia. Ainda que fossem cem atendimentos, ali vivem 1 200 homens, percebe? É uma gota de água. Mesmo se tivesse mais gente interessada, não vai resolver o problema.” Apesar de contar com enfermaria, o local não tem nenhum médico contratado. “No CDP de Pinheiros não tem médico também. Tem uma enfermaria que resolve na medida do possível. Os casos mais graves são encaminhados para a rua, mas precisa de escolta, de disponibilidade de carros, de agentes.”
Em relação aos remédios, o possível postulante a voluntário também não terá uma gama de opções para administrar. “Chego lá com uma cesta superbásica de medicamentos. Não tem raio X, mas mesmo assim resolvo 90% dos casos.” Como no antigo Carandiru, a incidência de sarna é uma das que mais prevalecem no cotidiano dos presos do Belém. “No velho Carandiru havia infecções de doenças sexualmente transmissíveis e agora continua tendo. Trinta anos depois está tudo igual.” O que está diferente, segundo o médico-escritor, são os casos de usuários de crack, cuja droga chegou à Detenção em 1992, mas depois foi proibida pelo Primeiro Comando da Capital (PCC), presente nas cadeias paulistas.
Desde que começou a atuar dentro dos presídios, Drauzio Varella passou a ouvir críticas de parte da sociedade. “Essa gente faz confusão e pensa que você está lá protegendo criminosos. É uma ideia absurda, uma burrice. Pensam assim até o filho ser preso. Imagina se no meu consultório particular eu atender um senhor de terno e gravata, agente da bolsa, e tiver de perguntar se ele cometeu um estelionato? Medicina não tem de julgar.”
Há dois anos, uma reportagem para o Fantástico, da TV Globo, rendeu ao médico e à emissora uma condenação na Justiça, depois revertida em instância superior. Ao mostrar a rotina de detentas transexuais, a matéria contou a história da presa Susy Oliveira, que falou da solidão e recebeu um abraço de Drauzio. O caso comoveu muitos espectadores, mas no dia seguinte soube-se que Susy foi presa por estuprar e matar um menino de 9 anos. “Nunca abracei uma presa ou preso nesses 33 anos. Não cabe ao médico abraçar. Foi a primeira vez. Mas vêm esses cretinos, políticos desprezíveis, jogando a história na internet. Fiquei triste por causa da família do menino. Eu não queria causar aquele sofrimento para quem passou por uma tragédia.”