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Diário dos sem-quarentena: “O médico sozinho não é nada”

A pediatra Priscila Fonseca conta sobre o dia a dia no hospital e o apoio que tem dos amigos e outros profissionais que também não podem parar de trabalhar

Por Priscila Fonseca, em depoimento a Helena Galante
Atualizado em 10 abr 2020, 06h00 - Publicado em 10 abr 2020, 06h00
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  • Quando a crise do novo coronavírus começou, eu me disponibilizei para atender em uma unidade básica de saúde em São Bernardo. Já tinha trabalhado lá antes, é um local muito afastado, só dá para chegar de balsa pela Represa Billings. Por não ter uma unidade de pronto atendimento na região, ela acaba funcionando como emergência para a população. Antes da oficialização da quarentena, muitas pessoas procuraram o posto para conseguir um atestado. Uma pessoa gripada demandava às vezes cinco atendimentos para familiares e cinco atestados. Nos hospitais particulares onde faço plantões, todo o trabalho de triagem inicial está dividido em duas seções, uma para pacientes com sintomas respiratórios e outra para os demais casos.

    Como pediatra, levo em conta o nível de medo com que os pais das crianças chegam. Atendi na última semana uma bebê de 2 meses que tinha febre há um dia. Não era nada grave, mas olhei para o pai e a mãe e entendi que eles estavam muito assustados para ir ao hospital num momento como este. Fiz o máximo para tranquilizá-los. Está todo mundo morrendo de medo, e os meus dias têm sido dedicados a acalmar os ânimos. Assim como outros médicos, eu me coloquei à disposição nas redes sociais para tirar dúvidas e evitar que as pessoas se dirijam a um hospital sem necessidade. Algumas pessoas que não tinham tosse mas relataram falta de ar ficaram mais calmas conversando, e o sintoma passou, era ansiedade.

    O ambiente hospitalar é pesado. Estamos paramentados com óculos, capote, touca, máscara. Quem está na UTI precisa usar a máscara o tempo inteiro, fica com o rosto machucado. Durante o atendimento, lavo as mãos o tempo inteiro. Passo álcool no consultório todo, do teclado à maçaneta. Quando chego em casa, deixo tudo no carro e vou direto tomar banho. Tudo está parecendo sujo, parece que estamos ficando loucos. Nessa hora, paro e penso que estou fazendo o que tem de ser feito, todos os procedimentos.

    Estou tentando me cuidar e cuidar das coisas que eu penso. Meu tio, que estava internado com Covid-19, faleceu. Foi muito rápido. Ele era um anjo, gentil, amorosíssimo. Tivemos de nos consolar a distância, nos abraçar a distância. Estamos cuidando uns dos outros, só assim para não sucumbir à tristeza.

    Num momento em que fiquei com muito medo, pedi a amigos que me mandassem notícias. E tantas coisas boas tinham acontecido. Comecei a olhar para todas as pessoas que, como eu, também estão trabalhando. Pensei na Gabi, que estava no pedágio para liberar a cancela, no seu José, que recebeu meu carro no hospital, na dona Margarida, que repôs o café para conforto dos médicos. Fui olhando com muita gratidão por todos estarem ali. Eu me inscrevi para ajudar a organização Médicos sem Fronteiras numa ação para levar atendimento às pessoas de baixa renda. As pessoas com quem eu moro ficam felizes de me ver de volta, recebo mensagens e ligações de amigos, da família. O médico sozinho não é nada, é um fardo muito pesado de carregar. É muito importante esse apoio. Não estamos sozinhos, nem nunca estaremos.”

    Publicado em VEJA SÃO PAULO de 15 de abril de 2020, edição nº 2682.

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