“Júlia foi uma criança muito desejada. Eu estava casado havia três anos, com a vida estabilizada, e planejamos bastante sua chegada. No ultrassom morfológico da 25ª semana de gestação, surgiu a possibilidade de ela ter a síndrome de Vater, uma anomalia que pode afetar a coluna, os rins, o coração e outros órgãos. Foi um baque. Você nunca imagina seu filho com uma deficiência. Ainda mais uma doença com nome estranho, que eu não conhecia: pensei que ela ficaria na cama para sempre.
Acabou sendo um alívio ver que não foi tão complicado quanto era esperado. Conforme descobrimos depois, nossa menina é portadora de um grau mais leve da doença. Seu desenvolvimento no aprendizado é normal. Mesmo assim, ela já passou por quatro cirurgias: duas do aparelho urinário, uma do coração e uma da coluna. Ela tem no corpo catorze parafusos e duas placas de fixação que lhe permitem ficar reta. Não existe a expectativa de que deixe de usar muleta. Terá sempre restrição para andar.
No começo, evitávamos sair na rua com ela. Era difícil enfrentar os olhares das outras pessoas. Nos dois primeiros anos, nós a cercamos de cuidados, preservamos muito o bebê, ficamos praticamente vivendo dentro de casa.
Com o tempo, percebemos que Júlia se adapta bem e é mais forte do que imaginávamos. Até porque já passou por muito nessa vida. Hoje quero que minha filha tenha uma rotina normal. Adoramos, por exemplo, passear com Titã, o cãozinho dela. Mas sei que ela não vai conseguir fazer tudo o que deseja. Vira e mexe, surgem dificuldades nas brincadeiras na rua. As colegas da mesma idade têm quase o dobro do tamanho de Julia.
Às vezes, ela se queixa: ‘A minha amiga não quis brincar comigo porque eu não consigo ir atrás da bola’. Digo que nada a impede de se divertir, dentro da sua restrição. Em algumas ocasiões, chegou a ficar muito chateada. No geral, porém, supera tudo e acaba se integrando. A mudança recente para uma nova escola é um sinal disso. Foi bem tranquila. Eu até estava preocupado, porque a matrícula já havia sido recusada em três colégios: disseram que não tinham estrutura para recebê-la. Por direito, eram obrigados a aceitar. Mas penso que, se eu forçar, não vai ficar uma situação legal.
Minha filha sempre chama atenção. Parece que tem uma luz. O tempo todo me mostra que, mesmo com dificuldades, a gente pode se adaptar, passar por cima e atravessar os obstáculos. Não sei se é porque frequentou muitos hospitais desde pequena, mas Júlia diz que será ‘médica de criança’ quando crescer. Vou fazer o que estiver ao meu alcance para realizar esse sonho.
Hamilton Marques, 43 anos, veterinário, pai de Júlia, 6, com síndrome de Vater