“Esse caminho era conhecido como ‘Faixa de Gaza’. Sempre foi abandonado, perigoso. Agora, venho andar de bicicleta três vezes por semana aqui”, diz o músico e ex-apresentador Luiz Thunderbird, 61, que na manhã do último dia 4 pedalava pelo futuro Parque Bruno Covas, na altura do Panamby. A inauguração está marcada para junho, mas eventuais interessados — como o carismático “Thunder” — já podem frequentar a nova área de lazer da cidade, ainda com obras em curso.
O parque terá aproximadamente 650 000 metros quadrados (ou 40% do Ibirapuera) e ocupará a margem oeste do Rio Pinheiros (o lado do Morumbi) entre as pontes João Dias e Cidade Jardim. Um segundo trecho, até a ponte do Jaguaré, deve ficar pronto no fim do ano. Tudo feito só com dinheiro privado: 58 milhões de reais, investidos por um grupo de empresários com negócios na região, que vai explorá-lo até 2025. Na prática, claro, a ideia só se tornou viável graças ao projeto de 2,8 bilhões de reais de despoluição do rio, que saneou 558 000 imóveis na bacia do Pinheiros nos últimos dois anos e meio. Ou seja, 1,5 milhão de pessoas, o equivalente à população de Porto Alegre, deixou de despejar esgoto em suas águas, cuja mudança no aspecto — e no cheiro — é evidente.
Antes uma “Faixa de Gaza”, a ciclovia do parque ganhou o mesmo acabamento da pista que funciona na margem oposta, recuperada nos últimos anos. Com uma diferença: enquanto a via que fica junto ao trem da CPTM só permite a entrada de bicicletas, o novo parque será aberto a pedestres, skatistas, patinetes e até animais domésticos — haverá uma área de 4 000 metros quadrados especialmente dedicada à diversão dos pets. Terá mais cafés, restaurantes e lojas: serão cinquenta pontos comerciais, enquanto a margem oposta tem vinte.
Uma pista de corrida vai acompanhar toda a extensão da ciclofaixa. O percurso será preenchido por parquinhos, espaços de convivência, banheiros, totens para encher garrafas d’água, pista de skate, um mirante flutuante e quadras de basquete e beach tênis (veja o mapa abaixo). Vai englobar, ainda, a futura Usina SP, uma empreitada de cerca de 550 milhões de reais (também privados) que transformará a Usina de Traição em um complexo multiúso moderno — uma das sócias é a JHSF, autora de projetos como o shopping Cidade Jardim e a Fazenda Boa Vista, no interior do estado.
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No início, o parque terá apenas cinco pontos de acesso. Só não tem mais por culpa de um faraônico empecilho: o monotrilho inacabado, em obras no lado oposto do rio. Duas entradas serão passarelas flutuantes sobre as águas — cena difícil de imaginar tempos atrás — que vão conectar as ciclovias das duas margens: uma em frente ao Parque do Povo (prevista para o segundo semestre) e outra na altura do Parque Global (para junho), megaempreendimento imobiliário próximo ao Panamby que é um dos principais patrocinadores da área verde.
“Nosso sonho é transformar o parque em algo similar ao Madrid Rio (na capital espanhola) ao longo do tempo”, diz Adalberto Bueno Netto, sócio do empreendimento. A construtora vai instalar uma passarela sobre as pistas da Marginal Pinheiros naquele ponto, ligando o parque a um estacionamento privado. A quarta entrada, na ponte Laguna, já existia. A quinta ficará na Ponte João Dias. Haverá ainda três estacionamentos: o do Parque Global (150 carros), um ao lado da Usina SP (100 carros) e o outro próximo ao Projeto Pomar, na ponta sul do parque (150 carros), trecho mais arborizado do trajeto.
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Desde a inauguração, portanto, será possível fazer uma pedalada de 17 quilômetros à beira-rio sem dar meia-volta: você acessa a ciclofaixa pela Ponte Cidade Universitária, vai até a passarela flutuante do Parque do Povo, atravessa ali para o Parque Bruno Covas, segue até a altura do Panamby, cruza a outra passarela flutuante e avança pela margem leste até a estação Jurubatuba, onde tem uma saída para a cidade. Terá percorrido dois terços dos 25 quilômetros do Rio Pinheiros, que vai da Billings ao Cebolão.
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A transformação das margens é resultado de um dueto afinado entre poder público e iniciativa privada. Após décadas de promessas não cumpridas de limpeza do rio, o empresariado inicialmente relutou em abraçar o novo projeto. “Até hoje, quando converso com bancos ou potenciais parceiros, eles me perguntam se a água vai ficar limpa mesmo”, diz Thiago Nagib, sócio da Usina SP. Spoiler: já ficou. Não 100% limpa, claro. Mas é um “novo” rio.
Dos 2 800 litros de esgoto que caíam por segundo no Pinheiros, 2 400 foram saneados. O restante deixará de atingir o leito até o fim do ano, quando o projeto chega a 100% da meta (está em 86%). Falta instalar cinco estações de tratamento, em córregos de regiões onde não era possível fazer tubulações de esgoto. “Resolvemos a raiz do problema. Não é como se existisse uma barcaça limpando o rio que, se parar de trabalhar, ele volta a ficar sujo”, diz Marcos Penido, secretário de Infraestrutura e Meio Ambiente do estado. “Demos uma ‘vacina’ para o Rio Pinheiros”, ele completa, em alusão a outra bandeira da gestão de João Doria e Rodrigo Garcia (PSDB). Dezenas de biguás, garças e outras aves viraram habitués do manancial.
Com o rio renovado, o dinheiro privado apareceu. A JHSF se tornou sócia de Nagib na Usina SP. (Aproveitou para inverter, no projeto, o lado da fachada que irá projetar as atrações culturais, agora voltada para o shopping e os prédios de alto padrão da empresa, na Cidade Jardim.) Os primeiros testes com público estão previstos para o segundo semestre de 2023. O espaço terá restaurantes, lojas e uma área de lazer flutuante.
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O parque — em si uma iniciativa privada — já tem patrocinadores como Santander, Heineken, Votorantim, Sabesp, Asics, Caloi e Strava. “Ele demandou mais investimento do que a ciclovia no lado da CPTM, onde foram gastos 30 milhões de reais, porque ali o asfalto para as bicicletas já estava pronto. A expectativa, no momento, é de apenas recuperar o dinheiro gasto”, diz Michel Farah, que administra a ciclovia leste e é sócio do consórcio do novo parque. A experiência mostra que, assim como a infraestrutura pública atrai o dinheiro, o dinheiro atrai os frequentadores. Antes da nova gestão, iniciada em 2020, a ciclovia recebia 17 000 pessoas por mês; agora, são 160 000.
De acordo com os empresários do parque, o fluxo se inverteu: agora são eles que recebem o assédio de interessados em participar da empreitada. O que dá asas à imaginação do grupo — e, de fato, é difícil calcular o potencial de um rio agradável na maior cidade da América Latina. “Temos planos de fazer uma piscina próxima à Ponte do Morumbi. No futuro, seria possível até implementar um ‘Uber barco’ no rio”, diz Daniela Amarante, arquiteta responsável pelo projeto.
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“No trecho em frente ao Parque Global, a ciclovia foi afastada do curso d’água, para permitir um deque com restaurantes e cafés”, ela explica. Entre os sócios do empreendimento imobiliário, a ideia já é chamada de “Puerto Madeiro paulistano”, em referência à região turística de Buenos Aires. (Vale lembrar que o Rio Pinheiros vai ganhar também uma roda-gigante, no parque Candido Portinari, vizinho ao Villa-Lobos, no fim do ano.)
A inauguração do Bruno Covas é uma das principais apostas da gestão estadual para acelerar a candidatura do governador Rodrigo Garcia, atualmente com 5% nas pesquisas. De certa forma, o parque torna visível as obras de saneamento dos últimos anos, um investimento que carrega a pecha de não render votos justamente por acontecer longe dos olhos do eleitorado. Na campanha, Garcia prometerá replicar o projeto no Tietê. “Será um desafio quatro vezes maior em termos de saneamento”, diz Penido, confiante em que tucanos também se beneficiarão do novo hábitat do rio.
Encontro das águas
A foto acima, feita recentemente sobre o Cebolão, mostra a diferença entre a cor da água do Pinheiros e a do Tietê (no alto da imagem).
Acima, dois biguás, espécie de pato, perto da Usina de Traição.
No meio do caminho
Nos anos que antecederam a Copa do Mundo de 2014, disputada no Brasil, tornou-se comum chamar de “obras-Copa” todas as melhorias urbanas prometidas pelas cidades-sede do evento. São Paulo tinha um único compromisso: um monotrilho para ligar o Aeroporto de Congonhas ao trem da CPTM, na Marginal Pinheiros. A chamada Linha 17-Ouro não ficou pronta naquela Copa, não ficou pronta na Copa da Rússia (em 2018) e não ficará pronta antes da Copa do Catar (em novembro próximo).
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A explicação para esse 7 a 1, protagonizado por sucessivas gestões estaduais do PSDB, está em uma série de brigas judiciais entre as empresas que participaram da licitação do monotrilho, o que paralisou a obra por diversas vezes.
Desde 2011, a construção ocupa um trecho da margem leste do Pinheiros (foto abaixo), interditando a ciclovia no local. Agora, ela impede um dos acessos planejados para o Parque Bruno Covas, na ponte velha do Morumbi.
A nova promessa do Metrô é entregar a obra-Copa paulistana em 2023. A empresa afirma também que o canteiro de construção que afeta a ciclovia e o parque será finalizado ainda em 2022. A ideia faraônica já custou 2,6 bilhões de reais ao contribuinte. O valor final está previsto em 4,7 bilhões.
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Publicado em VEJA São Paulo de 27 de abril de 2022, edição nº 2786