Num meio do caminho complexo entre os otimistas que previam no início da pandemia de Covid-19 uma reviravolta do bem, com pessoas se importando cada vez mais com causas sociais urgentes, e os apocalípticos que proclamaram o triunfo definitivo do cada um por si. É bem aí que o balanço da solidariedade em 2020 se equilibra. Diante do aumento do desemprego, das dificuldades econômicas e das necessárias medidas de distanciamento social, as ações de voluntários (seja com seu tempo ou dinheiro) enfraqueceram em diversas instituições. Mas se as pessoas físicas puderam doar menos, as contribuições de empresas chegaram ao montante histórico de 5,5 bilhões de reais no país, um aumento de mais de 120% em relação a 2018.
“O que observamos foi um aumento seletivo da solidariedade”, avalia Edson Brito, superintendente de marketing e relações institucionais da AACD, que destaca o caráter de exceção da situação vivida nos últimos meses. “Claro que é crucial auxiliar no combate à pandemia, mas a população continua a enfrentar outros obstáculos, como paralisia, câncer e fome. Esses problemas não foram pausados devido à catástrofe”, avalia Brito. No caso da AACD, que completou setenta anos, a campanha do Teleton arrecadou cerca de 27 milhões de reais (em 2019, foram 32,4 milhões). Diante da crise geral, o número ficou dentro do esperado, mas insuficiente para cobrir o déficit de receita deste ano, de cerca de 50 milhões. “A dúvida que fica é se essa onda de solidariedade será permanente ou se ela irá passar junto com a chegada da vacina”, diz o CEO, Valdesir Galvan.
“A dúvida é se essa onda de solidariedade irá passar junto com a chegada da vacina.”
Valdesir Galvan, CEO da AACD
Foco de combate ao coronavírus, os hospitais contaram com bem-sucedidas campanhas de arrecadação. Até outubro, o Fundo Emergencial para a Saúde recebeu contribuições que somaram 40,5 milhões de reais. O montante foi distribuído entre 56 hospitais filantrópicos nacionais, cinco deles daqui: Hospital das Clínicas da USP, Hospital São Paulo, Santa Casa, Comunitas e Santa Marcelina. No Hospital das Clínicas ainda, a iniciativa #HCCOMVIDA, que contou com a participação de mais de 100 artistas na divulgação, arrecadou 30 milhões de reais, vindos de mais de 7 000 doações de pessoas físicas e jurídicas.
O Hospital das Clínicas viu em uma campanha colaborativa on-line uma forma de conseguir mais recursos. A #HCCOMVIDA levantou mais de 30 milhões de reais destinados à compra de respiradores artificiais e testes de diagnóstico de Covid-19.
Atuante em mais de setenta países, a instituição Médicos Sem Fronteiras (MSF) registrou um aumento de 15% no número de doadores mensais fixos em 2020 (a contribuição é de a partir de 38 reais por mês). Parcerias com empresas como PicPay, Adidas e Oracle garantiram que as ações de realização de consultas médicas em pessoas em situação de rua para detecção de casos suspeitos de Covid-19 e triagem com encaminhamento dos doentes em estado grave para hospitais fossem mantidas sem prejuízo em São Paulo. Na União de Núcleos, Associações dos Moradores de Heliópolis e Região (Unas), o desafio foi dar conta dos projetos já em andamento e as ações emergenciais. “Fizemos uma operação para salvar vidas. Nos dividimos entre projetos sociais que já fazíamos e o combate à Covid-19. Fizemos a prevenção por meio de faixas e carros de som, além de arrecadar doações para moradores”, detalha Cleide Alves, presidente da Unas, cujo orçamento neste ano deve ser menor do que os 40 milhões de reais alcançados em 2019.
Mesmo ONGs amplamente reconhecidas pelo público tiveram de enfrentar turbulências. No caso dos Doutores da Alegria, o baque teve a ver com a forma de prestar seus serviços. Em trinta anos de atuação, pela primeira vez afastou seu time de palhaços dos hospitais. “Nossa reação inicial foi de choque. Mas o desconforto foi um estímulo para tirar do papel projetos que queríamos fazer havia algum tempo”, avalia o diretor-presidente Luis Vieira da Rocha. Para continuar suavizando a rotina hospitalar, desde setembro os artistas produzem a playlist Delivery Besteirológico, que acumula quase 200 vídeos que podem ser vistos por qualquer pessoa, paciente ou não. O andamento dos “tratamentos” são acompanhados por meio de grupos no WhatsApp com profissionais de saúde, que passaram a trabalhar em prol da trupe.
Com a pandemia, a ONG Doutores da Alegria se reinventou. Agora, produz vídeos e acompanha os pacientes pelo WhatsApp.
Fora do universo da saúde, a distribuição dos repasses foi bastante desigual. “Aquelas ONGs que eram grandes e já tinham visibilidade ganharam mais grana ainda. As menores acabaram minguando, porque tiveram ainda mais dificuldade de chegar aos doadores”, aponta Carlos Pignatari, gerente de impacto social à frente do VOA, programa voluntário da Ambev de mentoria em gestão para organizações sociais da companhia. Uma pesquisa encomendada pela Ambev e realizada pelo Datafolha em todo o Brasil mostrou que metade das 383 instituições ouvidas projetam dificuldades para se manter ativas em 2021. Ao olhar para o Sudeste, 36% das participantes afirmam que a questão financeira é preocupante, já que 21% daquelas com sedes nessa região viram seus gastos aumentar na pandemia. É o caso da Legião da Boa Vontade (LBV). A associação informou que embora tenha ocorrido um aumento significativo nas doações, vindas principalmente de pessoas jurídicas, a demanda por atendimentos evoluiu na mesma escala, o que pôs em xeque a continuidade de alguns programas.
A ONG Teto, que atua na construção de moradias em comunidades periféricas, foi uma exceção: aumentou em 114% as doações de pessoas físicas, enquanto, a contribuição de empresas diminuiu 30%.
Um censo realizado pela Gife (Grupo de Institutos Fundações e Empresas), associação de investidores sociais, mede desde 2001 quanto as empresas colocam a mão no bolso para doar. Em 2017, a cifra apurada chegou a 2,6 bilhões de reais. Um ano depois, em 2018, recuou para 2,5 bilhões, fazendo do número de 5,5 bilhões estimado pela Associação Brasileira de Captadores de Recursos (ABCR) em 2020 uma considerável guinada. “Esse acompanhamento parte das doações que foram noticiadas na imprensa, então acreditamos que o valor é maior ainda”, elucida Márcia Woods, presidente da ABCR.
Outro dado interessante é a forma como as contribuições são feitas: 60% em dinheiro, 31% em produtos e 8% em serviços. Quais setores doaram mais? O sistema financeiro lidera com 28%, graças à doação de 1 bilhão feita pelo Itaú. O banco também contribuiu em outras frentes, caso do projeto Todos pela Saúde, que desde março promove doações de insumos hospitalares, cestas básicas, itens de higiene e até radinhos de pilha para lares de longa permanência para idosos. “Nós tínhamos duas preocupações: apoiar quem já estava no hospital e evitar que mais pessoas fossem para lá”, explica Luciana Nicola, superintendente de relações institucionais, sustentabilidade e negócios inclusivos.
A Natura também foi para a linha de frente no combate à crise sanitária e disponibilizou 61 milhões de reais para a doação de itens, como 4,1 milhões de sabonetes. Os números são altos, mas não deslumbram Márcia, presidente da ABCR, que indica um próximo passo a ser dado para o amadurecimento da cultura da doação por aqui: “É preciso rever nossa legislação. No Brasil, há pouco incentivo e ainda você tem de pagar imposto para doar, o imposto sobre transmissão de causa mortis (ITCMD). Há distinções de alíquotas por estados e valores repassados, mas isso sem dúvida é um impeditivo”.
A pandemia teve como fruto o recorde de doações de empresas, 5,5 bilhões. Em 2018, esse número era de 2,5 bilhões. A Natura foi uma das companhias que entraram nessa onda solidária e doou itens de higienização, como sabonetes e frascos de álcool em gel.
Na esfera cotidiana, longe dos holofotes e das grandes cifras, paulistanos anônimos e também famosos arregaçaram as mangas para fazer o que puderam para tornar a vida de quem está em situação mais vulnerável um pouco mais confortável. São projetos como o Solidariedade Vegan, tocado pelo casal João Gordo, 56, e Viviana Torrico, 48. Desde 1º de abril, eles e mais quinze voluntários fixos oferecem cafés comunitários e almoços com refeições veganas a pessoas em situação de rua e populações de comunidades carentes. Sem papas na língua, o catador de re- cicláveis Reginaldo da Silva, 37, revela que não gosta do cardápio livre de produtos de origem animal. “Não curto a marmita. Um dia a Vivi ainda podia me levar em uma churrascaria”, diz Silva. Seu coração, porém, tem menos ressalvas que o paladar. “Me sinto acolhido por eles, por isso também ajudo no projeto. Participei de uma ação na favela do Boqueirão, para isso me comprometi a não beber nem usar drogas”, completa Silva. Para João Gordo, é justamente essa mudança cotidiana e a proximidade que faz a diferença. “Fico até emocionado. Antes via essa galera, mas não me aproximava. Hoje, tô perto, sei o nome de muitos deles. Não podemos tratá-los como invisíveis. São Paulo é a cidade mais fria e egoísta da América Latina”, fala João Gordo. Ainda há muito a ser feito.
À frente do Mocotó, Rodrigo Oliveira, 40, e sua esposa, a historiadora Adriana Salay, 36, tocam desde 21 de março o Quebrada Alimentada, projeto vencedor do prêmio Causa Social na última edição de VEJA SÃO PAULO COMER & BEBER. O intuito é distribuir quentinhas para pessoas em situação de rua que vivem perto do restaurante na Vila Medeiros, Zona Norte. “Muita gente que se dizia do bem se mostrou diferente. Mas sou otimista, o saldo foi mais positivo do que negativo”, avalia o chef.
Há 25 anos, a argentina Viviana Torrico, 48, veio a São Paulo e prometeu a si mesma que não se “acostumaria” a ver pessoas dormindo nas ruas. “Podemos mudar essa situação”, diz Vivi, em tom firme. Ela toca com o músico João Gordo, seu marido, o Solidariedade Vegan, projeto que faz cafés da manhã comunitários e distribui por dia 200 marmitas sem produtos de origem animal. “Fico na captação de recursos e ela se foca mais na distribuição”, detalha João Gordo.
O padre Julio Lancellotti, 71, capa da Vejinha em setembro, recebeu em dezembro o 7o Prêmio Dom Paulo Evaristo Arns, que valoriza ações pelos direitos humanos. Ele atende em torno de 500 moradores de rua e catadores que vão até à Pastoral do Povo da Rua, na Luz, em busca de doações. “Essa onda de solidariedade não pode ser pandêmica, tem de ser permanente. Para ser efetiva, ela precisa ser convertida em moradia, cidadania e trabalho”, defende ele.
O estacionamento da escola de samba Vai-Vai foi ocupado no último sábado (19) pelo projeto Entre Amigos, que fez a distribuição de brinquedos para cerca de 500 crianças carentes. “Vejo o sorriso deles quando ganham os presentes”, conta Duda, 15, jovem voluntária, que está ansiosa por 2021. “Que a vacina chegue lígia skowronski logo, para o Carnaval voltar.”
Na pandemia, a performer Tatiane Dell Campobello, 31, fez o que estava a seu alcance para ajudar. “Não tenho grana, então não conseguiria doar cestas básicas. Então doei o que tinha: tempo”, diz a artista, que participa na Casa do Povo da produção e distribuição de sabão para moradores de rua.
Publicado em VEJA SÃO PAULO de 30 de dezembro de 2020, edição nº 2719.