Hoje ela vive esquecida, espremida em meio a um casario da periferia. Disputa espaço com outras mais jovens e, recentemente, passou pela humilhação de ter um galho amputado para não danificar fios de energia elétrica. Mas nem sempre foi assim. A chamada “figueira das lágrimas” (Ficus organensis), a árvore mais antiga de que se tem notícia em São Paulo, situada no bairro do Sacomã, teve um passado de fama. Registros históricos revelam que, no século XIX, quem viajava em lombo de mula rumo a Santos parava ali para se despedir dos parentes e amigos, em rituais que costumavam acabar em choradeira. Teria sido essa a origem do apelido, que depois batizou também a principal estrada da região.
A primeira citação a esse monumento natural consta nos registros de um viajante português de 1861. É provável, contudo, que a planta seja mais antiga. Há menções de que, em 1822, dom Pedro I passou por debaixo de sua sombra a caminho da proclamação da independência. A prova fotográfica da longevidade é de 1910 e foi garimpada em arquivos históricos pelo ambientalista Ricardo Cardim. Mestrando em botânica na Universidade de São Paulo, ele começou o levantamento de espécies seculares da capital em 2008. “O trabalho abre caminho para projetos de preservação”, afirma.
Ao todo, o pesquisador identificou pela cidade, com a ajuda de fotografias antigas, cerca de vinte exemplares que já passaram dos 100 anos. Outro dos destaques pinçados no levantamento é a “figueira do Piques”, que brota do concreto no Largo da Memória, próximo ao Anhangabaú, e é da mesma espécie da sua parente lendária do Sacomã. Seu registro fotográfico data de 1922, mas o tamanho que tinha na época prova que ela estava lá havia vários anos. Segundo Cardim, é provável que sua copa, hoje com cerca de 40 metros de diâmetro, tenha protegido do sol os cavalos dos tropeiros que traziam mercadorias para a capital no fim do século XIX.
Na história das veteranas que impressionam pelo tamanho, o xixá do Largo do Arouche merece um capítulo especial. Tem aproximadamente 30 metros de altura e 1 metro de diâmetro de tronco. Sua primeira fotografia data de 1940 — ele, no entanto, já tinha o porte atual, o que permite dizer que nasceu décadas antes. Atualmente, é das árvores antigas que apresentam melhor estado de saúde: aparece bem integrada ao entorno, enquanto boa parte de suas contemporâneas vive ameaçada por concreto e fiação.
Cada uma das plantas mapeadas vale como um retrato vivo do que um dia foi a vegetação da cidade. Não é à toa que elas são chamadas por botânicos de “sobreviventes”. “Os colonizadores achavam que espécies nativas eram mato, e quase tudo foi destruído”, conta Cardim. Para ele, os exemplares que restaram têm o mesmo valor histórico de alguns dos grandes monumentos arquitetônicos. “É impressionante que, numa capital que foi praticamente destruída e reconstruída várias vezes, esses vegetais continuem vivos”, ressalta. São unidades que resistiram não apenas ao facão dos desbravadores e aos raios e tempestades ao longo de décadas, mas também ao estica e puxa da urbanização, em especial às podas, que deixam as plantas vulneráveis a doenças. Desde o início do ano, a prefeitura aparou cerca de 86.000 exemplares em toda a cidade — em geral, porque estavam invadindo o espaço de postes e prédios.
Os tesouros da flora paulistana, porém, não se restringem às espécies que chegam às alturas. O último exemplar destacado no levantamento, um pequeno arbusto de galhos finos, não impressiona pelo tamanho, mas é importante pela raridade. Em 1940, quando foi registrado pela câmera de um professor de botânica, o murici podia ser visto em qualquer canto de São Paulo. Agora, suas frutinhas azedas, que faziam a alegria da garotada no século passado, só são encontradas no campus da USP, onde, em breve, deve ser criada uma reserva para a planta.
HERÓINAS DA RESISTÊNCIA
Para chegar até aqui, essas plantas enfrentaram…
…AS PODAS
O rompimento da casca facilita a entrada de pragas, como os cupins. Quando malfeitos, os cortes podem causar desequilíbrio de peso, aumentando o risco de queda
…A POLUIÇÃO
A sujeira do ar faz a taxa de fotossíntese diminuir e torna a árvore mais vulnerável a uma série de doenças oportunistas, causadas principalmente por fungos
…A URBANIZAÇÃO
Com o solo compactado, fica mais difícil puxar a água e os nutrientes do solo