Paranapiacaba parece ter parado no tempo. A paisagem inclui arquitetura original de mais de 100 anos atrás e um relógio similar ao Big Ben. Surgido no século XIX para a residência de funcionários da companhia inglesa São Paulo Railway, o local, a 60 quilômetros da capital, também chama atenção pela linha férrea com trens à moda antiga. O distrito vive envolto em neblina e com baixas temperaturas. Por essas e outras, recebeu o apelido de “Londres brasileira”, com aquele exagero típico do marketing turístico. Nos últimos anos, no entanto, vem ganhando outro tipo de fama, bem menos poética. O lugar virou a terra dos animais abandonados.
Parte dos 1 100 moradores da vila diz que por ali há “mais cachorros do que pessoas”. A afirmação é um exagero (no último estudo da prefeitura, do ano passado, contabilizaram-se 221 cães e gatos, entre domiciliados e sem dono), mas reflete o que qualquer visitante pode atestar. Pelas vielas, encontram-se dezenas de bichos magros e mal cuidados, alguns machucados ou prenhes.
Agrava a situação o fato de a estrada que dá acesso ao lugar ter virado ponto de descarte. Os motoristas param os veículos, desovam as mascotes com a ajuda da cobertura da neblina e saem impunes graças à falta de fiscalização. Alguns dos pets chegam a sofrer atropelamento.
Em junho, a ativista da causa e jornalista Beatriz Levischi soube do problema por uma leitora de seu blog, o Gatoca. Encheu de ração o porta-malas do seu carro e visitou a região. Resolveu tentar uma parceria com o poder público de Santo André, cidade da qual Paranapiacaba é um distrito. “Acabei praticamente falando sozinha”, conta. A situação crítica é antiga e atinge todo o município.
Duas entidades locais, a Equipe Singulariana de Proteção aos Animais (Espa) e a União Andreense Protetora dos Animais (Uapa), entraram com uma ação civil pública em outubro do ano passado pedindo atitudes da prefeitura. Há pouco mais de um mês, elas conseguiram acelerar o processo por meio de uma tutela antecipada. O juiz determinou que as autoridades locais têm três meses para recolher os pets em situação de risco — com ferimentos ou doença — da cidade toda, incluindo Paranapiacaba. Se o pedido não for cumprido no período determinado, cabe multa de 10 000 reais por dia.
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Os responsáveis pela Gerência de Controle de Zoonoses de Santo André pretendem recorrer da decisão. “Não temos como fazer isso em um prazo tão curto”, afirma o administrador da instituição, Robson Lopes. A equipe recolhe atualmente apenas os animais que oferecem perigo à população, como enfermos ou agressivos, por meio de denúncias, mas em escala insuficiente para resolver o problema. Em 2016, foram 47 deles.
A organização abriga esses animais em seus canil e gatil, com capacidade para sessenta mascotes, recupera-os e leva os que estão prontos para doação a feiras de instituições parceiras. A verba anual de 1 milhão de reais da entidade mantém a estrutura do espaço e custeia atividades como castração. Paranapiacaba, no entanto, está fora do raio desse tipo de serviço há dois anos.
Enquanto isso, a população reclama e ajuda os animais da vila inglesa como pode. Dono de um pequeno restaurante, Manoel Diniz junta os restos de comida para alimentar os pets. Seu filho, o mecânico Rodrigo, queixa-se da situação. “É uma patifaria esse pessoal vindo para cá deixar os bichos”, diz. A família já perdeu dez galinhas abocanhadas pelos cães sem dono — houve histórias também de moradores mordidos.
O aposentado Jacir Francisco, de 60 anos, morre de pena. Cuida em sua casa de dez vira-latas vindos da rua, com nomes do naipe de Malu Madere Cyndi Lauper, e gasta 450 reais por mês com ração, sem contar os atendimentos veterinários. “Na cidade, preciso andar sem olhar para os lados, senão quero pegar todos”, brinca.