Rafinha Bastos, o novo rei da baixaria
Com ofensas e piadas grotescas, humorista lidera a turma cada vez mais numerosa de comediantes fora do tom
Não é fácil ser engraçado. Mais difícil ainda é não sair do trilho ao caminhar por algumas fronteiras tênues desse universo. Para fazer rir, é preciso ir além do que prega o senso comum. Em vários momentos, desafiar a patrulha politicamente correta. Afinal, humor a favor tem tanta graça como dançar com a irmã. Um passo em falso, no entanto, pode tirar o comediante do campo da irreverência e da ousadia e pôr tudo a perder. Quando a piada se sustenta sobre preconceitos ou grosserias gratuitas, o resultado é sempre constrangedor e ofensivo.
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Dentro da nova geração do humor brasileiro, boa parte dela formada por talentos surgidos nos palcos paulistanos ou nos programas de TV produzidos por aqui, muitos parecem não ter aprendido ainda a lição mais básica do seu ofício. Para essa turma, é engraçado fazer troça de autistas, de vítimas do holocausto ou das minorias, para citar apenas alguns exemplos recentes. Nessa lamentável competição da comédia de baixaria, quem vem se destacando é Rafinha Bastos.
O gaúcho de 34 anos faz sucesso em várias frentes. Está entre as estrelas do “CQC”, da Band, atração que registra picos de audiência de 8 pontos no Ibope e chega a ficar em segundo lugar em seu horário nas noites de segunda. No teatro, os shows do rapaz lotam o Comedians, na Rua Augusta, casa da qual é um dos sócios. Na internet, seu Twitter tem cerca de 3 milhões de seguidores e ele chegou a ser apontado pelo jornal americano “The New York Times” como o mais influente do mundo, à frente de nomes como Lady Gaga e Barack Obama. Na publicidade, foi visto em mais de 730 comerciais somente neste ano.
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Como efeito colateral de toda essa popularidade, Rafinha parece que vestiu a carapuça de gênio acima do bem e do mal, achando que tem o direito de fazer e falar qualquer coisa. No último dia 19, superou-se na capacidade de dizer coisas grotescas. Instado a comentar uma cena que exibia a cantora Wanessa Camargo, grávida de cinco meses de seu primeiro filho, engrossou a antologia de barbaridades levadas ao ar com esta inacreditável frase: “C… ela e o bebê”. O comentário não estava no roteiro. Ou seja, o comediante improvisou na hora o “caco”.
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No dia seguinte, o site da “Folha de S.Paulo” criticou a postura do humorista. Desdenhando, ele respondeu em seu Twitter, com a mesma impecável elegância: “Olá Folha de SP, vai tomar no olho do teu…”. Na Band, ninguém achou graça da história. “A emissora não gostou da piada e ainda está avaliando um possível afastamento dele do programa”, afirma o diretor artístico e de programação, Hélio Vargas, que ligou pessoalmente para o empresário Marcos Buaiz, marido de Wanessa, para se desculpar.
Segundo a coluna de Mônica Bergamo, publicada na “Folha de S.Paulo” na última quarta (28), o ex-jogador Ronaldo, sócio de Buaiz na agência de marketing esportivo 9ine, teria reclamado à cúpula da Band, pedido providências e rompido com a turma do “CQC” por causa da declaração. Em março, o Fenômeno chegou a participar das brincadeiras do programa, cumprindo uma promessa de subir numa balança para que todos pudessem conferir seu peso.
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Procurado por VEJA SÃO PAULO, Rafinha não quis comentar a repercussão do caso e limitou-se a dizer: “Sou comediante, faço piada. Acho a discussão válida, mas outras pessoas podem comentar melhor sobre o assunto”. Mas não há muito que discutir. E seus próprios colegas de bancada no “CQC” acham isso. “Não gostei, isso não é piada, não se encaixa na categoria humor. É uma deselegância, uma agressão gratuita. Ele foi infeliz”, diz o comandante da atração, Marcelo Tas. “Acho que o ‘CQC’ precisa superar a adolescência, passar dessa fase de rebeldia sem causa”, completa.
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Não foi a primeira derrapada feia do humorista. Em maio, outra declaração sua provocou um tremendo mal-estar: “Toda mulher que eu vejo na rua reclamando que foi estuprada é feia pra c… Tá reclamando do quê? Deveria dar graças a Deus”. Nesse caso, a reprimenda foi mais grave, e o Conselho Estadual da Condição Feminina de São Paulo entrou com uma representação no Ministério Público Estadual.
“Uma pessoa que diz algo tão desprezível não deve ter noção de quanto sofre uma mulher que passa por um tipo de violência como essa”, afirma a presidente da entidade e chefe da Delegacia de Defesa da Mulher, Rosmary Côrrea. Em julho, o próprio MP, por meio do Núcleo de Combate à Violência Doméstica e Familiar da Capital, requisitou ao Departamento de Polícia Judiciária da Capital a abertura de um inquérito policial para apurar uma suposta prática de incitação e de apologia do crime. “O estupro é um crime e o estuprador deve ser punido, e não publicamente incentivado”, declarou, à época, a promotora Valéria Diez Scarance Fernandes.
Essa total falta de noção acomete vários outros humoristas da atual geração. Companheiro de Rafinha no “CQC”, Danilo Gentili é outro que abusa das piadas despropositadas. Em maio, ele escreveu no Twitter a respeito da polêmica sobre a construção de uma estação do metrô na Avenida Angélica: “Entendo os velhos de Higienópolis temerem o metrô. A última vez que eles chegaram perto de um vagão foram parar em Auschwitz (campo de concentração nazista na II Guerra Mundial)”. Muito criticado pelo hediondo comentário, Gentili visitou a sede da Confederação Israelita do Brasil e apresentou um pedido formal de desculpas ao presidente, Claudio Lottenberg.
Pouco antes disso, o esquete “Casa dos Autistas”, veiculado em março no “Comédia MTV”, de Marcelo Adnet, mostrou atores atuando, de forma equivocada, como deficientes mentais confinados em uma residência, em uma lamentável tentativa de parodiar o reality show “Casa dos Artistas”, do SBT. A repercussão negativa obrigou a emissora a divulgar uma nota oficial para se desculpar e afirmar que o programa “ultrapassou limites aceitáveis do humor”.
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Em maio, durante um quadro do “Legendários”, da Record, o apresentador Marcos Mion disse que a transexual Nany People tem “uma surpresinha” e perguntou: “Como ela faz para tomar banho? Como ela vai à piscina? O que ela faz com o pacote?”. Uma ONG ligada ao movimento gay não gostou e abriu um processo por homofobia. Apesar da escorregada, Mion afirma que está se policiando mais. “Eu já fiz humor do mal, era moleque e queria mudar o mundo. Mas hoje eu não conseguiria soltar uma piada sobre alguém que está sofrendo com um câncer ou com uma tragédia pessoal”, diz.
Quase hors-concours na briga dentro da lama, o “Pânico na TV”, da RedeTV!, já recebeu 353 denúncias nos últimos quatro rankings da baixaria organizados pela Comissão de Direitos Humanos e Minorias da Câmara dos Deputados — 113 só no início deste ano. As queixas se referem à exposição de pessoas ao ridículo, humor grotesco, excesso de nudez e palavras de baixo calão. Entre os quadros denunciados estão o Momento Amy Winehouse, em que um dos atores se veste como a cantora e sai pelas ruas agredindo as pessoas, e Em Busca da Musa da Beleza Interior, da dupla Vesgo e Silvio, em que eles abordam mulheres anônimas e as expõem de forma degradante.
Qual a razão para estarmos vendo hoje tamanho festival de barbaridades? Segundo alguns especialistas, o fato de muitos desses artistas terem sido criados na cultura da stand-up comedy explica uma parte do problema. “Nos Estados Unidos, origem desse estilo, como o artista sempre faz piada sobre ele mesmo, ganha automaticamente o direito de rir dos outros”, diz Fábio Porchat, um dos roteiristas do programa “Zorra Total”, da Rede Globo. Esses espetáculos, no entanto, são produzidos para um público pequeno, que compra o ingresso já sabendo o que está por vir. A coisa ganha outra dimensão quando os excessos são veiculados na TV aberta, em geral ao vivo, para milhões de pessoas — crianças, inclusive. “Caras como o Rafinha não sabem medir o tamanho da força do que dizem na televisão”, afirma Hélio Vargas, da Band.
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Entre os humoristas daqui, impera o velho discurso da liberdade de expressão. E o raciocínio de que a própria graça da piada (ou ausência dela) dá a medida do que deve ser dito ou não. “Acho absurdo usarem o argumento da liberdade de expressão como justificativa para esse tipo de piada. Não foi para isso que pessoas morreram pela democracia”, diz o escritor, dramaturgo e jornalista Marcelo Rubens Paiva. “Grosseria não é um elemento de humor, é uma questão equivocada de ignorância histórica, de não saber os limites do que é engraçado.”
O humorista Marcelo Madureira, do “Casseta & Planeta”, reforça: “Quando você ofende alguém, é porque não houve graça, falhou. O que acho curioso no Rafinha Bastos é que ele tem um tipo de gracejo adolescente. É bobo”. Decano da televisão brasileira e ex-vice-presidente de operações da Rede Globo, o empresário José Bonifácio de Oliveira Sobrinho, o Boni, vê decadência na atual comédia brasileira. “O humor nacional está no fundo do poço, falta finesse”, lamenta ele. “Quando uma piada é feita com apelação e ofende a audiência, é porque ela é ruim. E isso é o mesmo que chamar o público de burro.”